25 de mai. de 2009

JOSÉ MIGUEL WISNICK - VENENO REMÉDIO

Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada
São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008

Autor finta clichês e pega touro a unha

José Miguel Wisnik dribla obviedades sociológicas para interpretar o futebol no Brasil em sua vastidão de sentidos

Professor da USP lança "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", livro em que analisa as relações entre futebol e cultura


Caio Guatelli/Folha Imagem
José Miguel Wisnik no gramado do estádio do Pacaembu, um dos templos do futebol brasileiro

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Com "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", o professor de literatura da USP, músico e ensaísta José Miguel Wisnik aplica um chapéu nos clichês e preconceitos comumente associados ao esporte mais popular do mundo e parte em direção à meta: interpretá-lo em seus múltiplos significados e sentidos, desde o jogo propriamente dito, com sua gramática e tempo peculiares, aos fortes laços que veio a estreitar com a cultura brasileira, ganhando aqui desenho próprio, mais elíptico e não-linear.
Em 448 páginas, o autor enfrenta uma miríade de temas, personagens e situações, que vai do goleiro ao juiz, de Garrincha a Ronaldo, de Machado de Assis a Pelé, de Macunaíma a Parreira, de Gilberto Freyre à sociologia uspiana, sem esquecer as sugestões de Pier Paolo Pasolini, o cineasta italiano que viu prosa no futebol europeu e poesia no brasileiro.

Wisnik não usa para isso uma teoria geral que emoldure e prenda a bola num quadro de uma perspectiva só. Joga, como diz na entrevista ao lado, com dados estéticos, literários e psicanalíticos para fazer o que pedia aquela espanhola da marcha de Braguinha, cantada em coro, em 1950, no Maracanã -"pegar o touro a unha".
O touro é o futebol, mas também o Brasil e as ambivalências das interpretações acerca de sua formação, de sua cultura e de seu futuro, ora a enfatizar suas potencialidades negativas, ora as positivas, num arco que vai do entusiasmo profético com a nação às afirmações derrisórias sobre seus fracassos.

Interpretações do Brasil
Veneno remédio é uma idéia contida na palavra grega "fármacon", poção que pode curar ou matar. É a "força que revira em seu contrário, o mesmo que se transforma em outro, o avesso do avesso", escreve Wisnik.

Nas visões clássicas sobre o Brasil, discutidas no capítulo mais teórico do livro, o que é veneno para um torna-se remédio para outro. Aquilo, por exemplo, que na sociologia uspiana é uma fórmula quase fatal -os efeitos e defeitos da colonização escravista portuguesa na periferia capitalista-, vira remédio na reversão de Gilberto Freyre, que aposta no desqualificado povo miscigenado e lança a mestiçagem como novidade civilizatória.

Embora inspire-se na cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, na dialética da malandragem de Antonio Candido e no Brás Cubas de Machado de Assis (com seu emplasto que mata quando deveria ser panacéia), é com o autor de "Casa-Grande & Senzala" que o conceito de veneno remédio parece ganhar amplitude na análise de Wisnik, dando-lhe mais gás para fintar a sociologia convencional de esquerda e falar, de maneira imaginosa, inteligente, não raro poética, sobre as interpenetrações de escravidão, futebol e cultura no Brasil.

Fino para não entrar de sola, o autor também sabe ir duro na bola, rechaçando investidas como as do filósofo Paulo Arantes que, em seu "júbilo hipercrítico", procura "reduzir em massa a singularidade brasileira à sintomatologia do "cronicamente inviável'".

Freyre, em campo oposto, realizaria uma inversão que já estava configurada no modernismo -"devorar a dimensão assustadora do outro, transformar "tabu em tótem", virar o recalque de ponta-cabeça e converter os próprios entraves traumáticos da formação brasileira em fermento libertador".

É o mestre de Apipucos (que ainda desperta resistências uspianas) quem aponta a submissão do "anguloso futebol anglo-saxão" ao "adoçamento curvilíneo" do futebol brasileiro, que realiza uma promessa de felicidade talvez sem paralelo em outras esferas da vida do país.
________________________________________
VENENO REMÉDIO
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (448 págs.)
__________________________________________

PROJETO UNE MÚSICA E LITERATURA
Inicialmente, "Veneno Remédio" seria um ensaio, de cerca de 40 páginas, para um projeto mais amplo do professor José Miguel Wisnik. A idéia era tratar das ambivalências das interpretações acerca do Brasil, visto ora como veneno, ora como remédio, no futebol, na música e na literatura. O ensaio, no entanto, ganhou corpo e foi deixando claro que se transformaria num livro. O autor começou a escrevê-lo em 2003, logo depois da Copa da Alemanha. "Em meio a outros projetos e atividades, fui dando forma ao livro nesses anos", diz Wisnik, que pretende manter, ainda assim, o projeto original. Literatura e música, que não deixam de estar presentes no livro sobre futebol, serão os temas dos próximos ensaios.
PELÉ, GARRINCHA E FREYRE

Trechos do livro sobre dois craques do campo e um da sociologia

"MAJESTADE DO CORPO" - Pelé
"A capacidade de dizimar defesas adversárias mudando o ritmo da investida, apontando como uma flecha em direção ao gol com arrancadas e paradas súbitas, fazendo a bola passar entre as pernas de um adversário e por cima da cabeça do adversário seguinte, com desnorteante simplicidade e furor, fazem parte da reserva mais seleta dos exemplos de enfrentamento superior das curvas do tempo e do espaço, da fulguração do "insight" no instante, da produção da epifania da forma, da afirmação natural da majestade do corpo"

"GOZO SEM FIM" - Garrincha
"Como Macunaíma, e não como Caymmi (que sela um pacto radioso com o tempo e com a música), Garrincha vence o gigante comedor de gente pela astúcia, mas perde para Vei, a Sol -a "mamãe natureza" pródiga que "não dá sobremesa" (usando aqui uma expressão de Rita Lee) para sua busca de gozo sem fim"

"LUTA DANÇANTE" - Gilberto Freyre
Para ele, "o futebol brasileiro extraía as qualidades de luta dançante da capoeira para fins decididamente lúdicos e estéticos, através dos "bailarinos da bola". Ele oferecia um efeito de comprovação prática da interpretação cultural em andamento na sua obra. O alcance mais engenhoso e inovador dessa formulação é que ela extraía a sua potência afirmativa dos próprios estigmas da escravidão, como uma operação simbólica que extraísse do veneno o próprio remédio"

LIVROS

"Temos a tecnologia de ponta do ócio"
Para Wisnik, o Brasil cumpre sua promessa de felicidade no futebol ao demonstrar vocação para explorar atalhos inesperados

Ensaísta diz que jogo admite situações narrativas, com o trágico, o cômico e o lírico; comparar Pelé e Machado "é provocação para país iletrado"

DO EDITOR DA ILUSTRADA
Leia a seguir a entrevista de José Miguel Wisnik sobre alguns aspectos do livro "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil". (MARCOS AUGUSTO GONÇALVES)

FOLHA - Ao tentar enfrentar o futebol em si mesmo e em sua formação brasileira, você se surpreendeu com o que encontrou?
JOSÉ MIGUEL WISNIK - Acho que é importante dizer que cresci na Baixada Santista, onde havia futebol de praia, futebol de várzea e futebol profissional, indo do Corinthians da Vila Cascatinha, em São Vicente, ao Santos de Pelé. De certa forma, nenhum desses futebóis era menos importante que o outro. Não cheguei ao futebol como um pesquisador que se depara com um objeto inesperado, mas como um adepto em constante pesquisa de campo que foi convertendo suas surpresas em um pensamento mais sistemático. Não escondo que escrevo a partir de uma paixão, mas assumo me colocar num lugar em que a paixão não exclui a exigência crítica. É o que vejo, por exemplo, nos textos de Pasolini sobre futebol, que me inspiraram muito. O caminho foi o de tratar o futebol considerando em primeiro lugar o que acontece dentro do campo, e, a partir disso, os seus efeitos e os interesses de todo tipo envolvidos nele, incluindo a violência, a alienação e a sua capitalização generalizada. A abordagem joga com dados estéticos, psicanalíticos, literários, colocados em perspectiva histórica. No Brasil, têm sido escritos bons livros historiográficos, sociológicos, biográficos e jornalísticos, que tratam do que se passa em torno do campo, mas pouco ensaio interpretativo, filosófico-cultural, sobre o que se passa dentro do campo.

FOLHA - O que difere o futebol dos outros jogos de bola?
WISNIK - Os jogos modernos de bola, como o basquete, o vôlei, o tênis, sem falar no futebol americano e no beisebol, são compactados em duelos claros de ataque e defesa que resultam em pontos ou ganho de território. São estruturados em confrontos de competência sucessivos, produtivos, que se traduzem todo o tempo em números e posições, cuja acumulação passo a passo define o vencedor. Já o futebol cria uma zona fluida, cheia de idas e vindas, incontáveis perdas e recuperações da bola, sendo que a maioria delas não se converte nem em pontos, nem em consolidação de posição. O gol pode não sair, mesmo sob bombardeio cerrado, ou pode surgir, inesperado, do nada. Por isso mesmo o futebol admite uma gama mais variada de situações narrativas, na qual entram componentes dramáticos, trágicos, cômicos, épicos, paródicos e mesmo líricos. Ele abrange um arco existencial mais amplo que o do princípio da concorrência. A margem de gratuidade, de acaso e de possível envolvimento é maior. Ele se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Eu acredito que isso tenha relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes.

FOLHA - Por que o futebol casou-se tão bem com o Brasil?
WISNIK - Como todos sabemos, o futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite, fazendo disso um instrumento eficaz. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, com elementos modernos e pré-modernos, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar e potencializar os seus atalhos inesperados.
No domínio desses dons invejáveis e ao mesmo tempo "improdutivos", com tudo o que isso possa ter de ambivalente, o Brasil se apresenta aos olhos do mundo como produtor de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio. De onde vem isso? Da conjunção de escravismo com mestiçagem, da dialética da malandragem, do "homem cordial", do atraso, da potência antropofágica? Nem vou começar a responder isso aqui, depois de ter terminado um ensaio que era para ter 40 páginas e acabou tendo 400. Só quero lembrar que, ao contrário de todas as outras áreas da cultura de massa, em que dominam os padrões norte-americanos, o esporte mais mundial não interessa aos americanos, e os esportes norte-americanos não interessam ao mundo.
Nesse curioso ponto em que falha a hegemonia do imaginário americano é que aparece, intrigantemente, o Brasil.

FOLHA - Quais as diferenças principais entre o futebol atual e aquele dos tempos do rei Pelé?
WISNIK - A fama de Pelé ganhou o planeta como uma lenda viva sem logomarca. É o primeiro mito esportivo realmente planetário e o último sem marketing. Não se elegia, como agora se faz, o "número um" do mundo (cilada em que têm caído todos os eleitos). Os jogos eram mais francos, e as defesas, mais abertas.
De lá para cá, cresceu o princípio de "otimização do rendimento", vedetizou-se a figura do técnico, turbinou-se a preparação atlética, cerrou-se a concorrência em todos os níveis, uniformizaram-se muito os estilos de jogo e banhou-se tudo em publicidade. É claro que há uma perda de inocência, de encanto e de graça. A diferença brasileira também não tem o mesmo lugar. Quem ler o livro verá, no entanto, que não me coloco na posição do sentimentalismo nostálgico, nem na do crítico que vê de cima e de fora. Procuro ver de dentro e de fora.

FOLHA - Ao explorar, no capítulo mais teórico do livro, uma correlação entre Machado de Assis e Pelé, você afirma que a promessa de felicidade brasileira só se completará com uma segunda abolição da desigualdade e com a cura do dispositivo doentio segundo o qual o país é receita de felicidade ou fracasso sem saída. Você poderia identificar os atores e motivos desse Fla-Flu?
WISNIK - Alguns podem pensar que eu estou barateando a literatura ao fazer um contraponto entre Machado de Assis e Pelé. Mas eu, que sou professor de literatura, considero essa relação, feita na parte final do livro, como uma provocação contra este país definitivamente iletrado em que nós estamos nos transformando.
A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira, e Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes.
Por meio de algo que neles ganha forma a partir da experiência brasileira, mas que na experiência brasileira não se completa, o Brasil aparece como melhor e pior do que ele mesmo. O futebol realiza a democracia racial que o Brasil não realiza. A agudeza e a atualidade antecipatória que a obra de Machado realiza paira sobre a viciosa incapacidade de mudar que ele mesmo acusa no país.
A ótica machadiana é a da negatividade: o raio-X irônico sobre a nossa síndrome de fuga para o imaginário e o conseqüente tombo no real. As Copas de 1950 e a de 2006, cada uma a seu modo e a seu tempo, por exemplo, podem ser vistas como episódios crônicos de tipo machadiano. O emplasto Brás Cubas é de certa maneira a fórmula disso: a panacéia universal que curaria a humanidade, mas que mata seu inventor antes que ele a invente.
O futebol brasileiro, no entanto, resultou numa espécie de emplasto Brás Cubas que deu certo em escala universal: "O alívio da nossa melancólica humanidade", reconhecido como tal em todos os quadrantes do planeta. Juntando o veneno e o remédio, ficamos numa gangorra infantil entre o tudo e o nada que é bem nossa conhecida. Isso está na relação ciclotímica da torcida com a seleção brasileira, na oscilação permanente entre deslumbramento e pessimismo que rege a avaliação do país, e na divisão entre a cegueira com que nos entregamos ao futebol e a posição altiva com que o "crítico" o desqualifica. Sair dessa síndrome é a condição imaterial de qualquer mudança. A condição material é a abolição da desigualdade campeã mundial.

FOLHA - No livro, parece que a idéia de veneno remédio ganha mais sentido com Gilberto Freyre. Qual a vantagem das teorias de Freyre sobre a sociologia uspiana na interpretação da cultura brasileira?
WISNIK - Na parte final do livro procuro ver como os três grandes intérpretes clássicos, Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, encaixam-se no que seriam os respectivos pontos cegos e luminosos, gerando um tipo de transleitura.
Não considero, assim, nenhuma vantagem absoluta de um sobre os outros. O mais importante me parece ser a identificação dos paradigmas que eles fundam e representam, e como esses paradigmas se articulam nas suas diferenças.
Mas vantagens relativas de Gilberto Freyre me parecem importantes. Para quem escreve um livro sobre futebol, Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol, no caso, a Copa de 1938, como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como um enfrentamento do famoso "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da colonização numa saída original graças à "reciprocidade de culturas", a passagem do vira-lata ao vir-a-ser.

Frases
"A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira; Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes"

"Para quem escreve um livro sobre futebol, Gilberto Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como um enfrentamento do "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da colonização numa saída original"
________________________________________
JOSÉ MIGUEL WISNIK
Músico, professor, ensaísta, autor de "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil"

"O futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar seus atalhos inesperados"

"O futebol se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Isso tem relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes"
________________________________________
IDEM
URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1705200807.htm

Nenhum comentário: