25 de mai. de 2009

JOSÉ MIGUEL WISNICK - VENENO REMÉDIO

Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada
São Paulo, sábado, 17 de maio de 2008

Autor finta clichês e pega touro a unha

José Miguel Wisnik dribla obviedades sociológicas para interpretar o futebol no Brasil em sua vastidão de sentidos

Professor da USP lança "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", livro em que analisa as relações entre futebol e cultura


Caio Guatelli/Folha Imagem
José Miguel Wisnik no gramado do estádio do Pacaembu, um dos templos do futebol brasileiro

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA

Com "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", o professor de literatura da USP, músico e ensaísta José Miguel Wisnik aplica um chapéu nos clichês e preconceitos comumente associados ao esporte mais popular do mundo e parte em direção à meta: interpretá-lo em seus múltiplos significados e sentidos, desde o jogo propriamente dito, com sua gramática e tempo peculiares, aos fortes laços que veio a estreitar com a cultura brasileira, ganhando aqui desenho próprio, mais elíptico e não-linear.
Em 448 páginas, o autor enfrenta uma miríade de temas, personagens e situações, que vai do goleiro ao juiz, de Garrincha a Ronaldo, de Machado de Assis a Pelé, de Macunaíma a Parreira, de Gilberto Freyre à sociologia uspiana, sem esquecer as sugestões de Pier Paolo Pasolini, o cineasta italiano que viu prosa no futebol europeu e poesia no brasileiro.

Wisnik não usa para isso uma teoria geral que emoldure e prenda a bola num quadro de uma perspectiva só. Joga, como diz na entrevista ao lado, com dados estéticos, literários e psicanalíticos para fazer o que pedia aquela espanhola da marcha de Braguinha, cantada em coro, em 1950, no Maracanã -"pegar o touro a unha".
O touro é o futebol, mas também o Brasil e as ambivalências das interpretações acerca de sua formação, de sua cultura e de seu futuro, ora a enfatizar suas potencialidades negativas, ora as positivas, num arco que vai do entusiasmo profético com a nação às afirmações derrisórias sobre seus fracassos.

Interpretações do Brasil
Veneno remédio é uma idéia contida na palavra grega "fármacon", poção que pode curar ou matar. É a "força que revira em seu contrário, o mesmo que se transforma em outro, o avesso do avesso", escreve Wisnik.

Nas visões clássicas sobre o Brasil, discutidas no capítulo mais teórico do livro, o que é veneno para um torna-se remédio para outro. Aquilo, por exemplo, que na sociologia uspiana é uma fórmula quase fatal -os efeitos e defeitos da colonização escravista portuguesa na periferia capitalista-, vira remédio na reversão de Gilberto Freyre, que aposta no desqualificado povo miscigenado e lança a mestiçagem como novidade civilizatória.

Embora inspire-se na cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, na dialética da malandragem de Antonio Candido e no Brás Cubas de Machado de Assis (com seu emplasto que mata quando deveria ser panacéia), é com o autor de "Casa-Grande & Senzala" que o conceito de veneno remédio parece ganhar amplitude na análise de Wisnik, dando-lhe mais gás para fintar a sociologia convencional de esquerda e falar, de maneira imaginosa, inteligente, não raro poética, sobre as interpenetrações de escravidão, futebol e cultura no Brasil.

Fino para não entrar de sola, o autor também sabe ir duro na bola, rechaçando investidas como as do filósofo Paulo Arantes que, em seu "júbilo hipercrítico", procura "reduzir em massa a singularidade brasileira à sintomatologia do "cronicamente inviável'".

Freyre, em campo oposto, realizaria uma inversão que já estava configurada no modernismo -"devorar a dimensão assustadora do outro, transformar "tabu em tótem", virar o recalque de ponta-cabeça e converter os próprios entraves traumáticos da formação brasileira em fermento libertador".

É o mestre de Apipucos (que ainda desperta resistências uspianas) quem aponta a submissão do "anguloso futebol anglo-saxão" ao "adoçamento curvilíneo" do futebol brasileiro, que realiza uma promessa de felicidade talvez sem paralelo em outras esferas da vida do país.
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VENENO REMÉDIO
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (448 págs.)
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PROJETO UNE MÚSICA E LITERATURA
Inicialmente, "Veneno Remédio" seria um ensaio, de cerca de 40 páginas, para um projeto mais amplo do professor José Miguel Wisnik. A idéia era tratar das ambivalências das interpretações acerca do Brasil, visto ora como veneno, ora como remédio, no futebol, na música e na literatura. O ensaio, no entanto, ganhou corpo e foi deixando claro que se transformaria num livro. O autor começou a escrevê-lo em 2003, logo depois da Copa da Alemanha. "Em meio a outros projetos e atividades, fui dando forma ao livro nesses anos", diz Wisnik, que pretende manter, ainda assim, o projeto original. Literatura e música, que não deixam de estar presentes no livro sobre futebol, serão os temas dos próximos ensaios.
PELÉ, GARRINCHA E FREYRE

Trechos do livro sobre dois craques do campo e um da sociologia

"MAJESTADE DO CORPO" - Pelé
"A capacidade de dizimar defesas adversárias mudando o ritmo da investida, apontando como uma flecha em direção ao gol com arrancadas e paradas súbitas, fazendo a bola passar entre as pernas de um adversário e por cima da cabeça do adversário seguinte, com desnorteante simplicidade e furor, fazem parte da reserva mais seleta dos exemplos de enfrentamento superior das curvas do tempo e do espaço, da fulguração do "insight" no instante, da produção da epifania da forma, da afirmação natural da majestade do corpo"

"GOZO SEM FIM" - Garrincha
"Como Macunaíma, e não como Caymmi (que sela um pacto radioso com o tempo e com a música), Garrincha vence o gigante comedor de gente pela astúcia, mas perde para Vei, a Sol -a "mamãe natureza" pródiga que "não dá sobremesa" (usando aqui uma expressão de Rita Lee) para sua busca de gozo sem fim"

"LUTA DANÇANTE" - Gilberto Freyre
Para ele, "o futebol brasileiro extraía as qualidades de luta dançante da capoeira para fins decididamente lúdicos e estéticos, através dos "bailarinos da bola". Ele oferecia um efeito de comprovação prática da interpretação cultural em andamento na sua obra. O alcance mais engenhoso e inovador dessa formulação é que ela extraía a sua potência afirmativa dos próprios estigmas da escravidão, como uma operação simbólica que extraísse do veneno o próprio remédio"

LIVROS

"Temos a tecnologia de ponta do ócio"
Para Wisnik, o Brasil cumpre sua promessa de felicidade no futebol ao demonstrar vocação para explorar atalhos inesperados

Ensaísta diz que jogo admite situações narrativas, com o trágico, o cômico e o lírico; comparar Pelé e Machado "é provocação para país iletrado"

DO EDITOR DA ILUSTRADA
Leia a seguir a entrevista de José Miguel Wisnik sobre alguns aspectos do livro "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil". (MARCOS AUGUSTO GONÇALVES)

FOLHA - Ao tentar enfrentar o futebol em si mesmo e em sua formação brasileira, você se surpreendeu com o que encontrou?
JOSÉ MIGUEL WISNIK - Acho que é importante dizer que cresci na Baixada Santista, onde havia futebol de praia, futebol de várzea e futebol profissional, indo do Corinthians da Vila Cascatinha, em São Vicente, ao Santos de Pelé. De certa forma, nenhum desses futebóis era menos importante que o outro. Não cheguei ao futebol como um pesquisador que se depara com um objeto inesperado, mas como um adepto em constante pesquisa de campo que foi convertendo suas surpresas em um pensamento mais sistemático. Não escondo que escrevo a partir de uma paixão, mas assumo me colocar num lugar em que a paixão não exclui a exigência crítica. É o que vejo, por exemplo, nos textos de Pasolini sobre futebol, que me inspiraram muito. O caminho foi o de tratar o futebol considerando em primeiro lugar o que acontece dentro do campo, e, a partir disso, os seus efeitos e os interesses de todo tipo envolvidos nele, incluindo a violência, a alienação e a sua capitalização generalizada. A abordagem joga com dados estéticos, psicanalíticos, literários, colocados em perspectiva histórica. No Brasil, têm sido escritos bons livros historiográficos, sociológicos, biográficos e jornalísticos, que tratam do que se passa em torno do campo, mas pouco ensaio interpretativo, filosófico-cultural, sobre o que se passa dentro do campo.

FOLHA - O que difere o futebol dos outros jogos de bola?
WISNIK - Os jogos modernos de bola, como o basquete, o vôlei, o tênis, sem falar no futebol americano e no beisebol, são compactados em duelos claros de ataque e defesa que resultam em pontos ou ganho de território. São estruturados em confrontos de competência sucessivos, produtivos, que se traduzem todo o tempo em números e posições, cuja acumulação passo a passo define o vencedor. Já o futebol cria uma zona fluida, cheia de idas e vindas, incontáveis perdas e recuperações da bola, sendo que a maioria delas não se converte nem em pontos, nem em consolidação de posição. O gol pode não sair, mesmo sob bombardeio cerrado, ou pode surgir, inesperado, do nada. Por isso mesmo o futebol admite uma gama mais variada de situações narrativas, na qual entram componentes dramáticos, trágicos, cômicos, épicos, paródicos e mesmo líricos. Ele abrange um arco existencial mais amplo que o do princípio da concorrência. A margem de gratuidade, de acaso e de possível envolvimento é maior. Ele se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Eu acredito que isso tenha relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes.

FOLHA - Por que o futebol casou-se tão bem com o Brasil?
WISNIK - Como todos sabemos, o futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite, fazendo disso um instrumento eficaz. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, com elementos modernos e pré-modernos, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar e potencializar os seus atalhos inesperados.
No domínio desses dons invejáveis e ao mesmo tempo "improdutivos", com tudo o que isso possa ter de ambivalente, o Brasil se apresenta aos olhos do mundo como produtor de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio. De onde vem isso? Da conjunção de escravismo com mestiçagem, da dialética da malandragem, do "homem cordial", do atraso, da potência antropofágica? Nem vou começar a responder isso aqui, depois de ter terminado um ensaio que era para ter 40 páginas e acabou tendo 400. Só quero lembrar que, ao contrário de todas as outras áreas da cultura de massa, em que dominam os padrões norte-americanos, o esporte mais mundial não interessa aos americanos, e os esportes norte-americanos não interessam ao mundo.
Nesse curioso ponto em que falha a hegemonia do imaginário americano é que aparece, intrigantemente, o Brasil.

FOLHA - Quais as diferenças principais entre o futebol atual e aquele dos tempos do rei Pelé?
WISNIK - A fama de Pelé ganhou o planeta como uma lenda viva sem logomarca. É o primeiro mito esportivo realmente planetário e o último sem marketing. Não se elegia, como agora se faz, o "número um" do mundo (cilada em que têm caído todos os eleitos). Os jogos eram mais francos, e as defesas, mais abertas.
De lá para cá, cresceu o princípio de "otimização do rendimento", vedetizou-se a figura do técnico, turbinou-se a preparação atlética, cerrou-se a concorrência em todos os níveis, uniformizaram-se muito os estilos de jogo e banhou-se tudo em publicidade. É claro que há uma perda de inocência, de encanto e de graça. A diferença brasileira também não tem o mesmo lugar. Quem ler o livro verá, no entanto, que não me coloco na posição do sentimentalismo nostálgico, nem na do crítico que vê de cima e de fora. Procuro ver de dentro e de fora.

FOLHA - Ao explorar, no capítulo mais teórico do livro, uma correlação entre Machado de Assis e Pelé, você afirma que a promessa de felicidade brasileira só se completará com uma segunda abolição da desigualdade e com a cura do dispositivo doentio segundo o qual o país é receita de felicidade ou fracasso sem saída. Você poderia identificar os atores e motivos desse Fla-Flu?
WISNIK - Alguns podem pensar que eu estou barateando a literatura ao fazer um contraponto entre Machado de Assis e Pelé. Mas eu, que sou professor de literatura, considero essa relação, feita na parte final do livro, como uma provocação contra este país definitivamente iletrado em que nós estamos nos transformando.
A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira, e Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes.
Por meio de algo que neles ganha forma a partir da experiência brasileira, mas que na experiência brasileira não se completa, o Brasil aparece como melhor e pior do que ele mesmo. O futebol realiza a democracia racial que o Brasil não realiza. A agudeza e a atualidade antecipatória que a obra de Machado realiza paira sobre a viciosa incapacidade de mudar que ele mesmo acusa no país.
A ótica machadiana é a da negatividade: o raio-X irônico sobre a nossa síndrome de fuga para o imaginário e o conseqüente tombo no real. As Copas de 1950 e a de 2006, cada uma a seu modo e a seu tempo, por exemplo, podem ser vistas como episódios crônicos de tipo machadiano. O emplasto Brás Cubas é de certa maneira a fórmula disso: a panacéia universal que curaria a humanidade, mas que mata seu inventor antes que ele a invente.
O futebol brasileiro, no entanto, resultou numa espécie de emplasto Brás Cubas que deu certo em escala universal: "O alívio da nossa melancólica humanidade", reconhecido como tal em todos os quadrantes do planeta. Juntando o veneno e o remédio, ficamos numa gangorra infantil entre o tudo e o nada que é bem nossa conhecida. Isso está na relação ciclotímica da torcida com a seleção brasileira, na oscilação permanente entre deslumbramento e pessimismo que rege a avaliação do país, e na divisão entre a cegueira com que nos entregamos ao futebol e a posição altiva com que o "crítico" o desqualifica. Sair dessa síndrome é a condição imaterial de qualquer mudança. A condição material é a abolição da desigualdade campeã mundial.

FOLHA - No livro, parece que a idéia de veneno remédio ganha mais sentido com Gilberto Freyre. Qual a vantagem das teorias de Freyre sobre a sociologia uspiana na interpretação da cultura brasileira?
WISNIK - Na parte final do livro procuro ver como os três grandes intérpretes clássicos, Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, encaixam-se no que seriam os respectivos pontos cegos e luminosos, gerando um tipo de transleitura.
Não considero, assim, nenhuma vantagem absoluta de um sobre os outros. O mais importante me parece ser a identificação dos paradigmas que eles fundam e representam, e como esses paradigmas se articulam nas suas diferenças.
Mas vantagens relativas de Gilberto Freyre me parecem importantes. Para quem escreve um livro sobre futebol, Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol, no caso, a Copa de 1938, como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como um enfrentamento do famoso "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da colonização numa saída original graças à "reciprocidade de culturas", a passagem do vira-lata ao vir-a-ser.

Frases
"A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira; Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes"

"Para quem escreve um livro sobre futebol, Gilberto Freyre é aquele que tomou pioneiramente o futebol como a demonstração de suas teses de "Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como um enfrentamento do "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a revirada dos estigmas da colonização numa saída original"
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JOSÉ MIGUEL WISNIK
Músico, professor, ensaísta, autor de "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil"

"O futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar seus atalhos inesperados"

"O futebol se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Isso tem relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes"
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IDEM
URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1705200807.htm

MANIFESTO SOBRE AS MÍDIAS LOCATIVAS

Manifesto sobre as mídias locativas
André Lemos (Professor Associado da Faculdade de Comunicação da UFBa).
http://andrelemos.info
Para Bernardo, que já busca o seu lugar no mundo.


Mídia – Todo artefato e processo que permite superar constrangimentos infocomunicacionais do espaço e do tempo. Mídias produzem espacialização, ação social sobre um espaço. Mídias produzem lugares.

Locativo – Categoria gramatical que exprime lugar, como “em” ou “ao lado de”, indicando a localização final ou o momento de uma ação.

Mídia Locativa - Tecnologias e serviços baseados em localização (LBT e LBS) cujos sistemas infocomunicacionais são atentos e reagem ao contexto. Ação comunicacional onde informações digitais são processadas por pessoas, objetos e lugares através de dispositivos eletrônicos, sensores e redes sem fio. Dimensão atual da cibercultura constituindo a era do “ciberespaço vazando para o mundo real” (Russel, 1999), a era da “internet das coisas”.

1. Crie situações para perder-se. O medo de perder-se é correlato ao medo de encontrar. Mas perdendo-se, encontra-se. A desorientação é uma forma de apropriação do espaço! Tudo localizar, mapear, indexar é uma morte simbólica: o medo do imponderável, do encontro com o acaso: evitar uma dimensão vital da existência. “Perder-se é um achar-se perigoso”, como diz Clarice Lispector.

2. Erros, falhas, esquecimentos de localizações e de movimentações são as únicas possibilidades de salvação da hiperracionalização atual do espaço. Só uma apropriação tática dos dispositivos, sensores e redes poderá produzir novos sentidos dos lugares. Desconfie de sua posição e de seu status de nômade. Quando sua operadora diz, “você é nômade”, desconfie. Mas saiba que o nomadismo é um traço essencial da aventura humana na terra!

3. Tudo é locativo: aprendemos, amamos, socializamos, jogamos, brigamos, festejamos, trabalhamos..., sempre de forma locativa. Não há nada fora do tempo ou do ESPAÇO. E o espaço social é o LUGAR. Em tudo, o lugar é o que importa.

4. Lugar é composto por fluxos de diversas territorializações. Ele é sempre dinâmico e, ao mesmo tempo, enraizado. Lugar é vínculo social. Lugar é fluxo de emoções, é topos, é memória e cristalização de sentimentos. Lugar não é fixação mas interrelação. Com as mídias locativas, o lugar deve ser visto como fluxo de diversas territorializações (sociocultural, imaginária, simbólica) + bancos de dados informacionais. Espaços visíveis marcados por fluxos invisíveis de informação circulando por redes invisíveis.

5. Hoje é impossível pensar os lugares sem os territórios informacionais. Mas lugares persistem sem nenhuma informatização. Não esqueça destes lugares. Pense nos contextos independentes de qualquer tecnologia.

6. Estamos na era da computação ubíqua e pervasive (Weiser), ou seja da informática em todos os lugares e em todas as coisas. Mas não há tecnologias sensíveis e nenhuma delas está atenta a contextos! Elas estão em tudo e em todos os lugares, mas não sabem o que é um contexto e nem tem capacidades de sentir o local.

7. Depois do upload para a Matrix lá em cima, a internet 1.0, agora é a vez do "download do ciberespaço", da informação nas coisas aqui em baixo, a internet 2.0. Não se trata mais do virtual lá em cima, mas do que fazer com toda essa informação das coisas e dos lugares aqui de baixo! Como nos relacionamos com as coisas e com os lugares? E agora, com essas coisas e lugares dotados de informação digital e conexão à internet? Convocamos Heidegger e Lefevbre?

8. Recuse os LBS e LBT que te colocam apenas na posição de mais um consumidor massivo. Busque produzir informação localizada que faça sentido aqui e agora. Esse é o único meio de construir lugares sociais com essa tecnologias de localização e mobilidade. Reivindique das mídias locativas as funções pós-massivas. A publicidade, o marketing e as operadoras te querem apenas como receptor passivo, massivo, embora supostamente livre, móvel e sem fronteiras. Eles te querem controlado, ativo mas consumindo, receptor pensando que está emitindo. Agir é mais. Reaja à isso.

9. Saiba que as mídias de localização não são novas. Toda mídia é, ao mesmo tempo, local e global. Preste atenção às mídias locativas analógicas que estão entre nós, pense nas anotações urbanas como os graffitis, stickers, bilhetes ou notas, preste atenção às marcas nas ruas, aos índices a sua volta, ao jornalismo local e agora hiperlocal. Aja como um detetive buscando solucionar os mistérios do espaço urbano! Busque o uso crítico dos dispositivos locativos. Lembre-se que o termo “mídia locativa” foi criado por artistas e ativistas para questionar a massificação dos LBS e LBT.

10. Use, divulgue e estimule o desenvolvimento de protocolos não-proprietários, de softwares colaborativos e de fonte aberta, de sistemas operacionais livres e participativos. A sua liberdade no mundo das mídias locativas é diretamente proporcional ao desenvolvimento da computação móvel aberta. Assim como na era do ciberespaço “lá em cima”, bem como na era da internet pingando nas coisas, lute contra o fechamento dos dispositivos, dos sistemas, dos softwares e dos contratos, como os que vigoram no atual sistema de telefonia móvel mundial. Busque, use e distribua jailbreak para todos os sistemas da mobilidade e da localização!

11. Pense que o único interesse do uso das mídias locativas é produzir sentido nos lugares. Se isso não acontece, desligue ou crie um uso que desconstrua o aparelho. Você não precisa ser preciso, você não precisa estar localizado o tempo todo, você não precisa ser sempre racional, um homo-economicus total para viver o local! Se os dispositivos ajudam, use-o, senão, desvie os usos (hacking) e, se não der mesmo assim, abandone!

12. Ache um equilíbrio entre o clique generalizado no mundo da informação e a contemplação ociosa. Desconecte e reconecte os seus dispositivos, sempre, diariamente, permanentemente. Pare, feche os olhos, abra os ouvidos e desloque-se apenas pelo pensamento, essa desterritorialização absoluta (Deleuze).

13. A questão da localização nem sempre está ligada ao espaço e ao movimento, mas ao tempo. Pense assim na duração, na viscosidade das coisas, na imobilidade, no tempo estendido. Saiba que nunca há “tempo perdido” e é impossível “matar o tempo”.

14. Independente de qualquer smartphone ou GPS, o que importa é que você já sabe onde está: "você está aqui" e "agora". Inverta a máxima de Walter Benjamin (1927) que afirmava que os “lugares foram reduzidos a pontos coloridos em um mapa”. Faça com que este pontos sejam efetivamente lugares.

15. Lute para que marcas, indicando nos mapas o que está perto de você, não evitem o seu encontro com o inusitado nem com o outro. Não se preocupe se não souber o que há por perto. Tenha consciência que, de qualquer forma, você sempre encontrará o caminho para os lugares que procura. Simples: peça informação, pergunte, procure indícios, encare o espaço como algo a ser desbravado, localmente, em contato com o mundo ao seu redor.

16. Pense nos cruzamentos, nas esquinas, nas diferenças de posicionamento; pense nas conexões, nas distâncias e nas aproximações; pense no audível e no inaudível, no visível e no invisível, no fixo e no mutável. Pense nos lugares como parte da sua existência, permanentemente em construção. Pense que você só é estando locativamente.

17. Dê sentido ao seu lugar no mundo, social, cultural e politicamente. As mídias locativas podem, através de anotações, de mapeamentos, de redes sociais móveis, de mobilizações políticas ou hedonistas e de jogos de rua, ajudar nesse processo. Mas tudo é potência e resta ainda o trabalho difícil, penoso, lento, de atualização.

18. Pense nos bairros, nos cruzamentos, nos caminhos, nos pontos históricos, nas bordas (Lynch). Sempre se pergunte como as mídias locativas podem agir em cada uma dessas dimensões: Como criar comunidade e agir politicamente (bairro)?, como proporcionar encontros (cruzamentos)?, como abrir novas veredas (caminhos)?, como criar novos marcos (pontos)?, como tensionar as fronteiras (bordas) com essas tecnologias?

19. Toda mobilidade pressupõe imobilidade e não existe e não existirá um mundo sem fronteiras. Fronteira é controle e controle pode ser liberdade. A imobilidade é uma condição da mobilidade e vice-versa. Só podemos pensar uma em relação à outra. Devemos mesmo estar imóveis para pensar a mobilidade e em movimento para pensar a inércia. Defina as suas fronteiras, tenha autonomia no controle de suas bordas, pare para se locomover e locomova-se para parar.

20. “Des-locar” não é acabar com o lugar, mas colocá-lo em perspectiva. Desloque-se e aproprie-se do urbano, escreva seu espaço com texto, imagens e sons, reúna pessoas, jogue, ocupe o espaço lá fora. As mídias locativas permitem isso. Mas se não conseguir fazer nada disso, então pense no uso e no porquê dessas tecnologias.

21. Mapas são sempre psicocartografias, nunca são neutros. Instrumentos técnicos, mnemônicos e comunicacionais, os mapas, incluindo aí os “Google Earth”, “Maps”, “Street”, e seus similares, são sempre expressões de visões tendenciosas do mundo. Eles sempre refletem estruturas de poder e servem como instrumentos para estender um domínio geopolítico. Pense na “miopia” dos mapas digitais. Compare os detalhes de Tóquio e de cidades da África nos mapas digitais para ter uma idéia dessa invisibilidade.

22. Saiba que todo mapa é uma mídia e que todo mapeamento é uma ação de comunicação, com mensagem, emissor, canal e receptor. Mapear é escrever e ler o espaço. Mapear é sempre um discurso sobre o espaço e o tempo. Mapas, como as mídias, são sempre formas de visualização, de conhecimento e de produção da realidade do mundo externo. Busque, como Borges no “Del Rigor de la Ciência”, criar mapas que sejam novos territórios na escala 1 x 1.

23. Construa mapas que desconstruam visões de mundo. Produza mapas do que não é mapeado em seu entorno, do que é invisível aos olhos bem abertos. Escape do cartesianismo, do racionalismo e das coordenadas geoespaciais. Tente usar as mídias locativas para descentralizar o poder de construção de mapas e de sentido sobre os lugares. Como diz Meyrowitz: “toda mídia é um GPS mental";

24. Não abuse das redes sociais móveis: encontrar amigos e conhecidos ao acaso pode ser mais interessante do que o tudo programado. A surpresa pode ser um ingrediente para grandes encontros. Mas pense também nas novas formas de voyeurismo, de controle, de monitoramento e de vigilância de amigos, familiares, empregados e empregadores.

25. Você é um ponto em roaming nos diversos sistemas (GPS, redes de telefonia celular, etiquetas RFID, redes Wi-Fi ou bluetooth...). Saiba que novos tipos de controle, monitoramento e vigilância (sutis, transparentes e locativos) estão cada dia mais presentes em tudo o que você faz, desde ligar o celular, acessar uma rede sem fio em um café, atualizar em mobilidade sua rede social, usar o caixa do banco, circular com uma etiqueta RFID em sua camisa ou pagar um pedágio automaticamente ao passar com o seu carro. Pense que não são apenas as câmeras de vigilância que estão te olhando!

26. Na atual fase da computação ubíqua e da internet das coisas, há os dados fornecidos, os “data”, mas há também aqueles que não são “dados”, mas captados à sua revelia e, as vezes, sem o seu conhecimento, os “capta” (Kapadia, et al.). Pense neles, nos “data” que você fornece e nos “capta” que te são roubados! Lute para proteger (agenciar) os novos territórios informacionais de onde emanam os invisíveis “data” e “capta”. Controle e defenda a sua privacidade e o seu anonimato, fundamento e garantia das democracias modernas. Crie, se for preciso, sistemas de contravigilância: sousveillance (Mann) contra a surveillance. No limite, forneça informações imprecisas ou desligue e torne-se invisível.

27. Não há apenas o panopticom do confinamento disciplinar de Foucault, mas o “controlato”, a modulação, a cifra e o “dividual” de Deleuze. As paredes não vedam mais nada. Os presos atacam da prisão. Para Pascal, o problema do homem é que ele não consegue ficar sozinho no seu quarto. Com as camadas informacionais, o que significa e qual a eficiência informacional de mandar alguém ficar de castigo, sozinho, no seu quarto?

28. Não há uso, distribuição, produção ou consumo neutro de informação e ou de tecnologias. Pense em como as mídias locativas podem te ajudar a criar e destruir seus territórios. Quais os limites dos seus territórios? Pense em maneiras criativas de contar histórias, de fazer política, de jogar e de se divertir. Essas tecnologias podem te ajudar a escrever e demarcar eletronicamente o seu espaço circundante, mas busque novas significações, novas memórias dos lugares, reforçar os vínculos sociais e o imaginário coletivo.

29. Comprometa-se em reverter a lógica dos olhares vigilantes, em produzir sons para ouvidos atentos, em criar imagens do passado atreladas ao presente. As mídias locativas só têm importância se ajudarem a produzir conteúdo que faça sentido para você e para o lugar onde vive. Não use passivamente nenhuma mídia, especialmente essas que agem sobre a sua mobilidade e localização no mundo!

30. Pense no uso da técnica (ela não é neutra), na comunicação como aproximação ao lugar e ao outro (ela não é impossível, mas improvável - Luhmann) e no seu lugar no planeta (ele é parte da sua existência). A pergunta deve ser: as mídias locativas te ajudam a encontrar o teu lugar no mundo?

IJ THEORY

Assim como existem DJs (disc jockeys) e VJs (video jockeys) sugiro que se considere a profissão do IJ ou Ideas Jockey. Entre outras coisas, Jockey significa manobrar em inglês. O DJ seleciona e mixa músicas, o VJ seleciona e edita imagens, o IJ seleciona, interfere e dissemina idéias: pop filosofia.
(IJ Abutre, site http://www.adeusxx.blogger.com.br)

GOMORRA E CAMORRA - Roberto Saviano

Jornal Folha de São Paulo, caderno MAIS!
São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

ENQUANTO A MORTE NÃO CHEGA
COM 80 CLÃS, MAIS DE 3.000 FILIADOS ARMADOS E UMA REDE EXTENSA DE COLABORADORES, A CAMORRA SE TORNOU "O SISTEMA", DIZ O ESCRITOR QUE SE TRANSFORMOU EM SÍMBOLO MUNDIAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

João Pina/Reprodução
Roberto Saviano (centro), cercado por policiais que o acompanham 24 horas, caminha em rua de Nápoles

MIGUEL MORA
Não sei se estou meio morto ou meio vivo. O que sei é que a ameaça dos Casaleses [clã mafioso] me converteu em uma pessoa pior. Mais desconfiada, mais egoísta. Sinto ódio dos amigos que me abandonaram quando o livro saiu, entre uma partida de Playstation e uma da Liga Fantástica. Apenas saio de casa. Não posso usar cartão de crédito. Vivo sob escolta 24 horas por dia. Deixei de ser um homem -virei uma equipe. Os rapazes são ótimos, são napolitanos como eu. Praticamos esportes juntos, lutamos boxe no ginásio... Mas sinto falta de Nápoles, aqueles eternos atrasos de trem na estação... O tempo se deformou, os minutos são estranhos, cada movimento banal requer um dia inteiro. E não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar, comprar uma geladeira. Ontem fomos ao supermercado, e foi patético. Os "carabinieri" [policiais militares] em torno do carrinho, todos opinando sobre a pasta que eu devia comprar. As pessoas se assustaram; nos abriram um espaço no caixa para que fôssemos embora logo. Quando saímos, eu disse aos rapazes: "Não vamos voltar"."

Assim é a vida de Roberto Saviano. Uma vida que não é vida, uma vida-morte, uma espécie de morte em vida.

O sucesso de "Gomorra" [ed. Bertrand Brasil], um dos maiores fenômenos da história italiana, converteu-se numa maldição para seu autor.
Reconhecimento, prêmios e elogios, fama, dinheiro e viagens, nada disso compensa o outro lado da moeda: Saviano foi difamado, cuspido e insultado pelos jovens de sua própria terra, abandonado por seus amigos, condenado à morte.
E hoje vive agachado, rodeado de armas e de policiais, em alta velocidade e à meia-voz.
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"Não posso mais fazer as coisas mais simples: passear, tomar uma bebida num bar..."
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O Sistema
Tem apenas 29 anos, mas percebe-se que já não é mais aquele rapaz que gostava de contar piadas e que ia conquistar o mundo quando formou-se em filosofia pela Universidade Federico 2º, em Nápoles.

Foi naquela época que Saviano começou a escrever seu primeiro relato real, intitulado "La Terra Padre" [A Terra Pai]. Naturalmente, o tema era a Camorra.
Conforme descrita por Saviano, a máfia napolitana, ou, melhor, da região da Campanha, deixou de ser o que era aos olhos de muitas pessoas -um grupo de bandidos dirigidos por tipos mais ou menos honrados que traficam e assassinam, mas que, no fundo, protegem uma população abandonada à própria sorte (embora esta última parte continue sendo verdade).

Ela passou a ser O Sistema, uma poderosa holding criminal que, de acordo com o último censo feito pelo chefe dos "carabinieri" de Nápoles, o general Gaetano Maruccia [leia entrevista na pág. 6], responsável pela segurança de Saviano, "tem pelo menos 80 clãs e mais de 3.000 filiados armados, aos quais se soma uma extensa rede de colaboradores".

Quando Saviano começou a escrever, era um jovem feliz, embora trabalhasse sem parar.
"Eu tinha quatro ou cinco trabalhos: numa pizzaria, dando aulas de reforço para crianças à tarde, como pedreiro ocasional no campo de Caserta, bolsista de doutorado em história contemporânea e colaborador de periódicos e sites."

Levou apenas alguns meses para juntar os 11 relatos verídicos que formam "Gomorra".
Pouco depois, o manuscrito se converteu em livro, graças ao faro dos editores da Mondadori. "Publicaram meu primeiro relato na revista "Nuovi Argumenti" (em abril de 2005), e depois fecharam comigo um contrato de promessa jovem. Me deram 5.000 de adiantamento por 5.000 cópias", recorda Saviano.

Logo depois esse contrato deu lugar a outro, com valores estelares. "Em maio de 2006, quando o livro finalmente saiu nas livrarias, eu era o cara mais feliz do mundo. Vivi os cinco melhores meses de minha vida. Eu era um homem livre. Ganhei o Prêmio Viareggio, comecei a escrever no "La Repubblica" e no "Espresso", a falar na televisão... E, de repente, tudo parou. Tudo o que aconteceu desde então eu não vivi."

Chegaram as primeiras ameaças dos Casaleses, o clã do povoado onde Saviano cresceu, Casal di Principe. E eram inequívocas. Ele teria que morrer. Não apenas sabia demais e tinha contado o que sabia, dando nomes e sobrenomes, relacionando cada informação com sua fonte, como também, e sobretudo, o livro havia chegado a pessoas demais.
A Camorra estava na boca de todos. Já não era o tradicional mal menor napolitano (fisiológico, à margem da lei). Era um câncer internacional.

Os juízes antimáfia levaram a advertência a sério. Era preciso protegê-lo, e rápido. No dia 13 de outubro de 2006, o ministro do Interior, Giuliano Amato, decidiu que Saviano deveria viver escoltado.

"Lembro-me do dia em que os policiais militares vieram me buscar em casa para me levar ao quartel. Os vizinhos brincavam: "Robbè, finalmente estão prendendo você!". Amato foi de uma sensibilidade extraordinária. Disse que o Estado tinha que me proteger, porque por mim defendia a liberdade de expressão, um princípio constitucional. Isso me converteu em símbolo da liberdade de expressão. Sempre o agradecerei por isso."

Dois anos e quatro meses se passaram. Seus velhos amigos se afastaram dele. Sua antiga namorada o deixou. Sua família se dispersou ainda mais do que já estava dispersa (seus pais se separaram em pouco tempo).

E Saviano se culpa por tudo isso. Diz que lamenta por "ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos os que me queriam bem".

Sua vida está "suspensa, cancelada, detida". É um destino quase irreversível. Por questões de segurança, foram necessárias semanas para marcar o encontro para esta entrevista. A primeira tentativa foi adiada porque os níveis de alerta dispararam.
Um primo de Sandokan [líder mafioso] chamado Carmine Schiavone e colaborador com a Justiça (um "pentito", ou arrependido), revelou que a Camorra tinha plano e data marcada. Iam matar Saviano antes do fim do ano, colocando uma bomba no caminho que ele percorreria na rodovia A1, que liga Roma a Nápoles.

Mas o nível de alerta diminuiu. Schiavone -que, mais do que um arrependido, parece ser o porta-voz da Camorra- declarou que seus ex-comparsas tinham decidido esperar que os holofotes fossem um pouco apagados antes de matá-lo. Com mais calma.
Finalmente pudemos marcar o encontro.
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"Lamento ter destruído meu mundo por um livro e ter feito mal a todos que me queriam bem"
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"Vão acabar comigo"
Com a ajuda de sua amabilíssima assistente, Manuela, programamos ir juntos a Nápoles, fazer uma refeição com Saviano e conhecer seu amigo, o general Maruccia, chefe do Comando Provincial dos Carabinieri de Nápoles.

É 16 de janeiro, a manhã é bela e gelada, e os dois carros blindados chegam pontuais e muito juntos, deslizando com elegância italiana.

Saviano está sentado no primeiro carro, no banco de trás, à direita. As sirenes deixam de tocar, e os carros param. Cinco policiais descem e vasculham a rua com seus óculos escuros e seus "walkie-talkies". Saviano continua sentado dentro do Lancia cinza.

Nos cumprimentamos e o fotógrafo começa a fazer imagens. Os guardas permanecem impassíveis. Estão acostumados. A esta altura, já foram fotografados 2.000 vezes e sabem que a Camorra conhece seus rostos milimetricamente. Mesmo assim, suas expressões não traem medo algum.

Saviano faz um apanhado do armamento: os Casaleses têm cem quilos de TNT e um arsenal de metralhadoras e pistolas. "Sei que vão acabar comigo. Cedo ou tarde, vão fazê-lo."

O homem blindado
AUTOR MERGULHOU NOS "INFERNOS LITERÁRIOS" PARA ENTENDER SUA SITUAÇÃO E REVELA QUE ENTRA EM CONTATO COM SEUS LEITORES APENAS PELO FACEBOOK
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Na Itália, quando se luta contra certos poderes, o destino das pessoas está selado
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Leia a seguir entrevista com Roberto Saviano.

PERGUNTA - Quer dizer que é assim sua vida atual?
ROBERTO SAVIANO - É assim. Eles vão aos lugares antes de mim. Chegam primeiro, controlam tudo, e depois eu vou. Para qualquer coisa. Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão na frente, depois eu vou, a olho, escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para comprá-la. Nunca voltamos ao mesmo lugar.

PERGUNTA - O sr. sempre teve cinco guardas?
SAVIANO - Comecei com dois, depois passaram a ser cinco.

PERGUNTA - O sr. muda muito de casa?
SAVIANO - Sempre que observamos algum detalhe diferente. Por exemplo, se há uma obra em andamento num edifício próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali que já foram julgadas, eles me mudam de casa. Basta algo assim.

PERGUNTA - Eles o escoltam também dentro de casa?
SAVIANO - Não, normalmente não entram em casa. Esperam atrás da porta. Vinte e quatro horas por dia.

PERGUNTA - Parecem tranquilos.
SAVIANO - Têm muitos anos de experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e "supertestemunhas". Maruccia os escolheu.

PERGUNTA - Com tanto contato, vocês já devem ter virado amigos.
SAVIANO - Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.

PERGUNTA - O sr. encontra amigos em casa?
SAVIANO - Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi muito doloroso entender isso. É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem ninguém parece estar à altura trágica de sua situação...

PERGUNTA - A normalidade se torna absurda.
SAVIANO - Sim, as propostas das pessoas normais, falar de coisas bobas, sair para tomar uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado num turbilhão no qual existia apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas nos livros. Fiz uma espécie de descida aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em situações mais graves, conseguiu sobreviver.

PERGUNTA - E quais autores o ajudaram?
SAVIANO - Os perseguidos pelos soviéticos: Boris Pasternak [1890-1960], Varlam Shalamov [1907-82]... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia [1958-2006], que acabou de forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou esquecê-la. Tampouco me esqueço das cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que ele escreveu e publicou, porque resistiu a ataques cotidianos, parecidos com os que eu sofro.

PERGUNTA - E, tantas vezes, com a cumplicidade do governo.
SAVIANO - Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.

PERGUNTA - Deixando o sr. fora do circuito?
SAVIANO - Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo, que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque se cria um círculo vicioso que impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é justamente isso: a atenção.

PERGUNTA - Quando o sr. escreveu o livro, imaginou que aconteceria algo assim?
SAVIANO - Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia. De repente me vi no meio desta guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves. Agora não posso pôr os pés em Nápoles. Esta viagem é a primeira que faço em um mês. Todas as cidades me convidam, menos a minha. Apesar de "Gomorra" ser o livro mais vendido da história da cidade.

PERGUNTA - Soa irônico, é verdade.
SAVIANO - Restam poucos focos de resistência ali, poucas forças sadias. Uma delas é Marotta, o filósofo; outra, o cardeal Sepe. E o bispo Raffaele Nogaro, em Caserta, que leva adiante o trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe que foi assassinado. É curioso que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse é o drama do sul da Itália.

PERGUNTA - A crise econômica vai agravar a situação?
SAVIANO - Com certeza. E isso vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar. [Devemos estar por volta do quilômetro 80. Faltam 150 para Nápoles. Não há muito tráfego na estrada e o automóvel voa, como os dos videogames. Os que andam pela esquerda nos acompanham em alta velocidade. "Vamos levar pouco mais de uma hora", informa Saviano. "Se os "carabinieri" nos pararem, vamos sorrir." É a primeira piada da viagem.] [Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que nos aproximamos de Nápoles, vai ficando mais tenso]

PERGUNTA - Na realidade, o sr. vive uma espécie de vida virtual. Como um super-herói ao avesso.
SAVIANO - Uma vida virtual e blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália. O que me dá satisfação são coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de mensagens de jovens. Isso é precioso. Neste país ainda há pessoas que têm vontade de se expressar.

PERGUNTA - O sr. sente mais esse apoio que o da classe intelectual?
SAVIANO - O papel do escritor mudou de repente, e alguns se sentiram assediados. Muitas pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam mudar as coisas; hoje já não se pode afirmar isso. Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme que tem o leitor que escolhe ler um livro... Talvez ele não se dê conta disso. Eu, sim. Os leitores, e não o livro, são a chave de minha história. Se ninguém tivesse lido meu livro, a Camorra teria se importado muito menos com ele.

PERGUNTA - A jornalista do "Il Mattino" Rosaria Capacchione, autora de "L'Oro della Camorra" [O Ouro da Camorra], também vive sob escolta.
SAVIANO - Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é que ela ainda vive e trabalha em Nápoles. Consideram-me um palhaço porque escrevo fora da cidade. Já ela é respeitada.

PERGUNTA - [O jogador de futebol] Cannavaro já disse que essas coisas da máfia é melhor não espalhar...
SAVIANO - A máfia faz todo mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro se equivoca em uma coisa. Não é um problema local, é global: eles investem em todo lugar.

PERGUNTA - Muitos napolitanos pensam como ele.
SAVIANO - Sim, um dia um advogado gritou para mim: "Sou eu quem paga sua escolta!". E os vizinhos de um apartamento que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me terem ali.
[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. "Você vê Nápoles e depois morre", reza o ditado. Uma frase que não parece oportuno citar quando o carro estaciona no quartel da polícia. Por sorte a pizzaria fica perto dali, na rua de Toledo.]
[Os livros são a grande paixão de Saviano, desde pequeno. Seu rosto só se ilumina quando fala de literatura e quando chega a pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]
[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo círculos, como um menino. Então conta que tirou de "Soldados de Salamina", de Javier Cercas, a inspiração para escrever seu "relato real". E que gostaria de encontrar Mario Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o escolheria como padrinho de meu retorno público.
Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui no Instituto, porque foi essa grande tradição laica e civil de Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram napolitanos. Aqui nasceram as ideias de liberdade na Europa.
E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas preferiu voltar. Foi detido em Veneza e o queimaram.
Alguns me dizem: "Fale da grande cultura, e não da vida ruim". Caravaggio é a beleza, e essa beleza me dá forças para relatar o mal. Se não existisse essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a beleza para encobrir o mal, ela se converte em disfarce.
Estive com Salman Rushdie em Nova York. Cheguei com a escolta, ele se aproximou com Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.
Salman me disse o que eu sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém vai acreditar que o que você mais deseja é tomar um café num bar. Que a única forma de reconquistar sua liberdade é decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre e saber quando você quer voltar a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio...
Mas isso é algo que preciso pensar bem, porque começar do zero é difícil.
[Estamos de volta a Roma. Saviano escapuliu na metade da tarde de sexta-feira para passar o fim de semana com sua "mamma" (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um relato verídico sobre o crime organizado internacional. O outro falará dele próprio, do homem solitário. Será quase uma vendeta.]
["Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que sinto pelos amigos que me abandonaram quando escrevi "Gomorra". Sinto ódio por eles. Entendo que a vendeta não é uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais precisava deles. E a amizade é o contrário disso, não?"]
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Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue - você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade
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PERGUNTA - Com sua família as coisas vão melhor?
SAVIANO - Quando meus pais se separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai, que é o médico da cidade, nos finais de semana.
Arruinei a vida de todos que me eram próximos. Meu irmão foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.

PERGUNTA - Dizem que tudo vem da infância. O que o sr. se recorda da Camorra daquela época?
SAVIANO - Meu pai me levava para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas.
Lembro que pescávamos percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar no mar, a água salgada penetrava em seu leito.
Meu pai sempre teve medo da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.
Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia fazer nada. Sempre foi assim. "Se você é "furbo" (malandro), pode aproveitar", diziam. Se você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.
A Camorra sabe que só tem problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com filhos deficientes.

PERGUNTA - Quer dizer que não é apenas um Estado, mas um Estado de Bem-Estar Social.
SAVIANO - Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem tirá-lo de você.

PERGUNTA - Quando decidiu ser escritor?
SAVIANO - Aos 14 ou 15 anos. Eu sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.
A cultura é o que realmente salva nossa vida; minha terra me deu isso de presente. A "Anábasis" de Xenofonte se parece comigo.
Para escrevê-la, ele se tornou mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia: "Não confia em quem escreve sobre coisas não vividas".

PERGUNTA - Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.
SAVIANO - Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às vezes dou socos nas paredes. É uma meia morte, ou uma meia vida.

PERGUNTA - Ela acabará um dia...
SAVIANO - Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do Plebiscito quando eu for velho, ou usando uma peruca loira. Mas não acredito. Nápoles não só não esquece como sente rancor. "Gomorra" arrancou a tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca. Dizem: "Você está ganhando dinheiro com a "monnezza" (o lixo), hein?", ou "pare de escrever porcaria, 'buffone'". Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho que dizer a eles que têm que me defender dos ataques físicos, não dos espirituais.

PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou a Turquia.
SAVIANO - A Europa e o México são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o autor [Georgi Stoev] de "BG Godfather" [Chefão Búlgaro]. Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou seu trabalho... Dá medo neles o autor que consegue fazer sua mensagem extrapolar seu território.

PERGUNTA - O sr. pensa muito em sua própria morte?
SAVIANO - Bastante. Me dizem que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas. Sei que me farão pagar - está escrito. Convivo tanto com isso que já não me assusta mais. Quando chegarem, porque chegarão, será dentro de algum tempo. A tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles, seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo que é exagero, continuarão com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço. Diziam isso a Falcone. E ele disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não se defendia das calúnias porque elas se defendem sozinhas, e que a máfia lhe faria um favor matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e que dizia a verdade.

PERGUNTA - Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra e a verdade, e são mais poderosas que as balas.
SAVIANO - Contar a verdade me ajudou a afastar as sombras que eu carregava por dentro e que se projetavam sobre mim. Eles venceram em parte, por me fazerem viver assim. Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a Camorra. Destruíram minha vida, mas, quanto a mim, o que fiz já não é meu. É das crianças.
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A íntegra deste texto saiu no "El País". Tradução de Clara Allain .

Isto é a Camorra
DO "EL PAÍS"
Desde 1979, a Camorra comete em média um assassinato a cada 2,5 dias. Tem faturamento de bilhões de euros anuais, controla parte do tráfico de cocaína na Europa, domina o negócio da extorsão, da agiotagem, da coleta de lixo e do transporte de dejetos tóxicos.

Ela controla crianças de 11 anos, que atuam como sentinelas, abocanha grandes contratos públicos para os quais são feitas licitações na região da Campanha -onde fica Nápoles.

A Camorra também lava dinheiro no setor da construção civil da Espanha, compra políticos, faz prefeitos, administra direta ou indiretamente 40% do comércio de Nápoles, fabrica roupas no mercado negro para grandes empresas, dirige a importação e distribuição de mercadorias falsificadas vindas da China e domina o porto da cidade.


Isto é "Gomorra"
DA REDAÇÃO
O livro "Gomorra", publicado na Itália pela editora Mondadori, vendeu mais de 2 milhões de exemplares em seu país e foi traduzido para mais de 30 línguas. Lançado no Brasil no final do ano passado pela Bertrand Brasil (trad. Elaine Niccolai, 350 págs., R$ 39), já vendeu no país 37 mil exemplares.
A adaptação cinematográfica, dirigida por Matteo Garrone, recebeu o Grande Prêmio em Cannes em 2008 e foi vista por 65 mil pessoas nos cinemas brasileiros. Está disponível nas locadoras (Paris Filmes).

Terremoto em Abruzzo criou nova frente para mafiosos, diz Saviano
DA REDAÇÃO
O terremoto de 6 de abril, que matou cerca de 300 pessoas na região de Abruzzo, na Itália, pode ser uma nova frente de corrupção. A interpretação é defendida por Roberto Saviano e investigadores locais.
"Quanto mais danos são averiguados, mais dinheiro, mais contratos e subcontratos são gerados, e a circulação de cimento, o transporte de terra, as escavações e a edificação irão atrair a vanguarda da edificação por subcontrato na Itália, ou seja, os clãs, a máfia, a Camorra e as famílias da Ndrangheta", escreveu Saviano no "La Repubblica".
Na quinta, o premiê italiano, Silvio Berlusconi, propôs ao G8 trocar a cidade que sediará a reunião do grupo de países em julho: o governo italiano argumenta que Áquila, cidade mais atingida pelo tremor, precisa mais dos investimentos em estrutura do que La Maddalena, na Sardenha.


"A Camorra não é um primo pobre da máfia"
DO "EL PAÍS"

Tomamos um café napolitano, delicioso, e vamos rapidamente conhecer um dos melhores amigos de Saviano: o general Gaetano Maruccia, homem afável, culto e cortês.

PERGUNTA - Por que o livro de Saviano foi tão importante?
GAETANO MARUCCIA - Porque chamou a atenção do grande público para a Camorra e tornou mais compreensível seu potencial criminal.
Antes as pessoas pensavam que eram meros gângsteres urbanos, e não criminosos organizados, como a Cosa Nostra [na Sicília] ou a Ndrangheta [na Calábria]. Pareciam os parentes pobres das máfias, e não é verdade.
São um poder armado e horizontal, com diversas estruturas e uma hierarquia pouco clara, composta de grupos autônomos, que às vezes se enfrentam entre si.
E em vários níveis. Os pequenos bandos locais, que vivem sobretudo da extorsão de dinheiro para "proteção" e do tráfico local de drogas, são responsáveis pelo gangsterismo urbano e, às vezes, trabalham para quadrilhas que não ficam a dever em nada às "endrine" calabresas ou às "famílias" sicilianas.

PERGUNTA - O sr. teme pela vida de Saviano?
MARUCCIA - O dispositivo é adequado ao nível de risco. Obviamente, é preciso manter a guarda alta sempre e agir com extrema prudência.

PERGUNTA - O sr. já o conhece faz anos. Poderia defini-lo em poucas linhas?
MARUCCIA - Isso não se pergunta a um amigo, e menos ainda se ele está à sua frente. É um jovem brilhante, inteligentíssimo, sabe manejar as informações com enorme visão, analisando o presente e prevendo o futuro.
Seu grande talento para escrever lhe permitiu fazer esse livro, baseado no estudo analítico do fenômeno e em seu grande conhecimento do terreno. Sabe enxergar coisas que escapam a outros.

PERGUNTA - Saviano vai acabar se exilando?
MARUCCIA - Acredito que suas declarações sobre uma possível mudança ao exterior foram apenas um momento de desmoralização de um jovem que se viu de repente no centro da fama e de uma rede muito complexa de responsabilidades e tarefas.
Se isso acontecesse, não seria coerente com sua forma de ser, nem com sua mensagem de compromisso social.
Mas, conhecendo-o, estou certo de que isso não vai acontecer.

PERGUNTA - Vocês vão vencer esta guerra?
MARUCCIA - Estou convencido disso, não lutamos sozinhos. Não existem tempos; é uma batalha diária.
É preciso, essencialmente, reforçar as intervenções sociais, dar oportunidades para que se possa sair do circuito criminal perverso.
Com repressão, apenas, não iremos a lugar algum. Precisamos de todos os recursos -cultura, trabalho, educação, paciência e tempo, escritores, jornalistas. Trata-se de erradicar a violência como conceito de vida.

URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2604200906.htm

A feira das ilusões - Jorge Coli

jornal Folha de São Paulo, caderno MAIS!
São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009
ponto de fuga

A FEIRA DAS ILUSÕES
Sem o mercado, as artes plásticas não existiriam hoje; o mercado é a sua biosfera artística; bom ou ruim, é o único modo, em nossa sociedade, dentro do qual um criador se torna profissional (JORGE COLI, COLUNISTA DA FOLHA).

O mercado das artes é bom ou é ruim? Há uma resposta ética possível. Data do século 19, quando a galeria substitui o comprador direto ou o mecenas.

Em pleno romantismo, a ideia do gênio incompreendido paira com nobreza. O sucesso comercial é percebido com desconfiança. Acredita-se então que a arte esteja acima do gosto comum, ao qual toda concessão por parte do artista se torna um crime.
As vanguardas sublinharam essa convicção, que a história também reforçou. A arte de desprezados terminou por triunfar, numa lição tanto moral quanto estética.

A pureza da criação artística, que não se suja com baixas razões materiais, torna-se a quintessência de uma santificação pautada pelo rigor: entre os seus vários e tremendos anátemas, André Breton excomunga Artaud por ter aceito uma encomenda paga. Nobre posição heroica exigida dos criadores, ela articula-se, porém, graças a mecanismos invisíveis, à vil máquina do mercado, cujo combustível é a flutuação do gosto.

O sucesso das vanguardas fez certos autores passarem, em algumas décadas, do zero às dezenas de milhões em moeda forte: o caso de Van Gogh é exemplar. Elas, as vanguardas, "esquentaram", como se diz nas Bolsas de Valores, o mercado das artes graças a lucros vertiginosos.

Está claro, esse mesmo mercado tenta recriar, artificialmente, situações semelhantes que o levem a ganhar muito dinheiro. A obra mostra-se parecida com uma ação na Bolsa de Valores: apenas ela é concreta, bonita, pode dar prazer. Ou, às vezes, nem isso: alguns colecionadores possuem "carteiras" de arte guardadas em bancos.

"Blue chips"
Os termos da mesma pergunta podem ser tomados de um ângulo prático: o mercado das artes seria benéfico ou prejudicial para a criação do artista? A resposta vai mais longe: sem o mercado, as artes plásticas não existiriam hoje. O mercado é a sua biosfera artística. Bom ou ruim, é o único modo, em nossa sociedade, dentro do qual um criador se torna profissional.

Estímulos oficiais são importantes. Dão oportunidades a quem começa; organizam mostras originais e arriscadas, bancam a formação de jovens, ou deveriam fazê-lo. Não que o Estado substitua o mercado nem tem ele instrumentos para tanto. É, ou deveria ser, um regulador cultural no sentido de compensar as falhas daquilo que é um comércio.

Caso contrário, as obras de arte milionárias e chiques passam a depender apenas de milionários que querem ser chiques, como acontece no Brasil.
Entre nós, a diminuta participação dos poderes públicos e a grande festa das leis de incentivo fazem com que os ricaços se assenhoreiem tanto do mercado quanto das instituições.

Aplicações
A Feira de Arte do Ibirapuera, em São Paulo [SP Arte, que ocorreu de 14 a 17/5], tem uma atmosfera elegante e cordial de gente fina. Há muitos artistas brasileiros do século 20. São Ismael Neris, Pancettis, Guignards, Di Cavalcantis. Tantos, que por vezes a pulga fica atrás da orelha. Há belas obras também, e recentes, e internacionais. Os preços são estratosféricos.

Valores Um dos aspectos mais simpáticos na SP Arte são os estandes, embora em número reduzido, voltados para criadores em começo de carreira. Galerias discretas, com preços modestos, às vezes ínfimos, propõem ótimas descobertas, apostando em desconhecidos.

O colecionador de recursos parcos leva para casa, sem esnobismo nem especulação, uma obra que lhe trará prazer genuíno, com a qual ele passará a compartilhar sua existência.
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jorgecoli@uol.com.br

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Reciclando idéias - Peter Burke

jornal Folha de São Paulo, caderno MAIS!
São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009
+ autores

Reciclando ideias
Imagem da inovação como repentina e individual contrasta com a evolução dos saberes, que é gradual e coletiva (PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA)


Muitas pessoas no mundo hoje, especialmente nos domínios dos negócios e da ciência, se dedicam à inovação. Pensam, lecionam e escrevem sobre as maneiras pelas quais se pode estimular, medir e gerir a inovação.

Como e por que a inovação acontece, perguntam.

Por que existem lugares e momentos históricos que parecem mais favoráveis do que outros à inovação?

Florença durante o Renascimento serve como exemplo ou a Inglaterra nos estágios iniciais da Revolução Industrial -quando as máquinas têxteis e locomotivas a vapor e tantas outras máquinas foram inventadas- ou o Vale do Silício [EUA] na década de 1970.

Algumas pessoas acreditam que a inovação possa ser encorajada por meio da criação de centros de pesquisa, outras preferem meditação, sessões de discussão ou até mesmo softwares que facilitam a geração de ideias.

Mas o que exatamente é inovação? Suspeito que a visão da era do romantismo sobre a inovação continue a prevalecer ainda hoje.

De acordo com ela, a inovação é trabalho de um gênio solitário, muitas vezes um professor distraído que carrega uma ideia brilhante na cabeça -aquilo que meu tio, um físico que trabalhava no setor industrial, costumava chamar de "onda cerebral".
Einstein, por exemplo, ou Isaac Newton, que supostamente descobriu a gravidade quando uma maçã caiu em sua cabeça, ou, no mais famoso dos exemplos, Arquimedes, que saiu correndo nu pelas ruas de Atenas gritando "eureca!".

No entanto existe uma visão alternativa sobre a inovação, da qual eu por acaso compartilho.

De acordo com essa segunda visão, a inovação é gradual em lugar de súbita e coletiva em vez de individual.

Não existe uma oposição acentuada entre tradição e inovação. É possível até mesmo identificar tradições de inovação, sustentadas ao longo de décadas, como no caso do Vale do Silício, ou de séculos, como nos campos da pintura e da escultura durante a Renascença florentina.

Novos usos
Por isso, em lugar da metáfora da "onda cerebral", talvez fosse mais esclarecedor usar como metáfora a reciclagem, o reaproveitamento ou o uso improvisado de materiais.

O caso da tecnologia serve como exemplo.

Na metade do século 15, Johannes Gutenberg inventou as máquinas de impressão. No entanto, prensas estavam em uso na produção de vinho havia muito tempo na Renânia natal de Gutenberg e em muitos outros lugares. Sua brilhante ideia não surgiu do nada; na verdade, representou uma adaptação da prensa de vinho a uma nova função.
A invenção do telescópio por Galileu [1564-1642], da mesma forma, pode ser mais precisamente definida como reinvenção. Ele havia ouvido falar de que alguém na Holanda teria inventado um instrumento para fazer com que as estrelas parecessem maiores. E, assim que obteve essa informação, imediatamente descobriu uma maneira de produzir instrumento semelhante para seu uso.

A inovação nas ideias, por exemplo em disciplinas acadêmicas, parece acontecer de maneira semelhante, pela proposição de analogias e adaptação daquilo que já existe a novos propósitos. Alguns historiadores falam em "deslocamento de conceitos" de um campo intelectual a outro.

Por exemplo, a arqueologia se tornou disciplina científica no começo do século 19, quando as pessoas compreenderam que os objetos encontrados em escavações podiam ser datados de acordo com sua profundidade na terra com os "estratos" em que foram encontrados. A linguística, outra nova disciplina que estava em desenvolvimento no começo do século 19, também precisou de adaptação criativa.

Quando classificavam idiomas, alguns linguistas se deixaram inspirar pela metodologia que Carl Linnaeus desenvolveu para classificar plantas, enquanto outros seguiram o modelo de "anatomia comparativa" proposto pelo zoólogo Georges Cuvier.
Uma vez mais, na metade do século 19, Charles Darwin desenvolveu sua ideia de uma luta pela existência entre as coisas vivas e da sobrevivência dos mais aptos depois de ler o trabalho de Thomas Malthus sobre população. Ele adaptou o que Malthus tinha a dizer sobre os seres humanos ao mundo dos animais e das plantas.

No começo do século 20, quando a antropologia se tornou uma disciplina científica, ela era definida pelo método de "trabalho de campo" no seio de povos "primitivos". Mas a ideia de trabalho de campo foi inspirada pela história natural, já que os naturalistas se orgulhavam de observar diretamente os animais e plantas em seus habitats naturais.

Tradução
Em todos esses casos, seria possível utilizar a expressão "tomado de empréstimo", mas metáfora melhor seria "tradução", que enfatiza o trabalho que é preciso realizar quando ideias se movimentam de um lugar ou domínio a outro.

As novas disciplinas oferecem oportunidades especiais para observação ou inovação, já que os fundadores dessas disciplinas foram treinados em outros campos. Por exemplo, os primeiros professores de línguas e literaturas vernáculas foram treinados como estudiosos do grego e do latim clássicos.

Um dos fundadores da sociologia, Émile Durkheim, estudou filosofia, e outro, Max Weber, era historiador. Os primeiros antropólogos foram recrutados de uma variedade de disciplinas, entre as quais os estudos clássicos (James Frazer), geografia (Franz Boas), medicina (W.H. Rivers), biologia, psicologia e até mesmo geologia. Alguns dos primeiros estudiosos do campo hoje conhecido como biologia molecular haviam estudado física, como Francis Crick, ou química, como Max Perutz.

A inovação nas disciplinas mais estabelecidas muitas vezes segue o mesmo caminho. Um antigo colega meu, o biólogo John Maynard Smith [1920-2004], estudou engenharia. Quando mudou de ramo, passou a observar o corpo humano do ponto de vista de um engenheiro, e isso permitia que visse coisas que haviam escapado à atenção de biólogos anteriores.

Analogias e metáforas parecem desempenhar papel essencial no pensamento, da física (vide a ideia de "ondas", por exemplo) à antropologia, na qual culturas estrangeiras são muitas vezes comparadas a livros que precisam ser lidos.

Essas analogias são fundamentais na construção daquilo que o filósofo da ciência Thomas Kuhn [1922-96] costumava designar como "paradigmas" intelectuais. Eu duvido um pouco que seja possível fazer uma lista de regras para a inovação, porque os inovadores muitas vezes quebram as regras em lugar de segui-las. Tampouco estou certo de que seja possível desenvolver uma teoria da inovação.

Mas seria seguro afirmar que analogias e adaptações têm posição central no processo de inovação.

A reciclagem intelectual é tão importante para a inovação quanto a reciclagem de objetos materiais o é para nossa sobrevivência no planeta.
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PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Tradução de Paulo Migliacci.

21 de mai. de 2009

O berço da humanidade

VEJA - Edição 2112 - 13 de maio de 2009
Antropologia

O BERÇO DA HUMANIDADE
Pesquisa sobre a diversidade genética chega à conclusão de que o homem moderno surgiu há 200 000 anos onde hoje é a fronteira entre Angola e Namíbia
Leandro Beguoci
Mark Read/Corbis/Latin Stock

A grande viagem
Os sans, ainda hoje caçadores e coletores: seus antepassados se espalharam pela África e, há 50 000 anos, deixaram o continente para colonizar a Ásia
O nascimento da humanidade em jardins verdejantes com árvores frutíferas faz parte da mitologia de muitas religiões. Também inspirou grandes pintores, como o renascentista Hieronymus Bosch, autor de Jardim do Éden. A maior pesquisa já feita sobre a diversidade genética da África, berço da espécie humana há 200.000 anos, muda esse cenário para um amontoado de areia, pedras e arbustos. O estudo, realizado pela Universidade da Pensilvânia, concluiu que o homem moderno surgiu numa região que hoje se situa na fronteira entre Angola e Namíbia, no sudoeste do continente africano. Nessa área vivem os 100.000 integrantes do povo san, ainda hoje formado por caçadores e coletores. Nenhum povo africano tem uma variedade genética tão grande quanto os sans, e foi justamente isso que levou os pesquisadores a concluir que seus antepassados deram origem à humanidade. Sabe-se que, quanto mais distantes da África, menor a diferenciação de genes das populações que hoje habitam os quatro cantos do mundo. A explicação é simples. A população original teve mais tempo para acumular variações em seu genoma. Chama-se a isso "efeito fundador". As populações mais distantes da África são descendentes de grupos migratórios pequenos e relativamente recentes, o que se traduz num conjunto genético mais homogêneo.
A pesquisa conclui que os antepassados dos sans se espalharam pela África. Também calcula o ponto exato em que um grupo deles – talvez um bando tribal com não mais que 150 integrantes – teria deixado a África, há 50.000 anos, cruzando o Mar Vermelho em direção à Ásia – e daí ganhando o mundo. A descoberta reforça a tese, consolidada nas últimas décadas pelas pesquisas genéticas, de que a humanidade descende de um pequeno grupo de "Evas" e "Adãos". A conclusão de que os sans se espalharam pela África e se tornaram nossos antepassados é reforçada pelo fato de certas características da língua falada por eles estarem presentes em diversas outras do leste da África, próximo de onde o homem moderno deixou o continente. Uma pesquisa de 2003 concluiu que o idioma dos sans pode guardar a chave para explicar a origem da própria linguagem humana. Os pesquisadores da Pensilvânia, encabeçados pela antropóloga e geneticista Sarah Tishkoff, trabalharam por mais de dez anos coletando material genético de 3 194 integrantes de 113 populações da África. Entre muitos obstáculos geográficos para chegar a alguns desses grupos, tiveram de engendrar planos para coletar sangue sem ofender costumes tribais.
Por fim, os pesquisadores descobriram que todos os africanos são descendentes de catorze populações. Para obterem esse resultado, eles compararam os padrões genéticos com a etnia, a cultura e a língua dos povos pesquisados. Descobriram fortes relações entre os traços genéticos e a cultura de cada povo, com poucas exceções. Entre elas, os luos, grupo étnico do Quênia ao qual pertence o pai do presidente americano Barack Obama. Durante muito tempo, os luos foram classificados como de origem sudanesa. Na verdade, são descendentes do ramo banto, que inclui 500 idiomas africanos.
O estudo foi festejado como uma peça-chave para a compreensão da origem da humanidade, das migrações que povoaram o planeta e das adaptações do homem ao meio. Ele se soma a pesquisas semelhantes feitas sobre os primeiros europeus. Também abre caminho para aplacar as chagas do continente africano, encontrando novos tratamentos para a aids, a malária e a tuberculose. Pessoas oriundas de grupos diferentes respondem de maneira diversa aos medicamentos. "Os africanos têm sido negligenciados nas pesquisas de mapeamento genético porque o acesso aos grupos com maior diversidade genética é difícil", diz a pesquisadora Sarah Tishkoff. Ela também avalia que os resultados de seu estudo serão importantes para mapear doenças genéticas características de negros americanos. Com a pesquisa da Universidade da Pensilvânia, o jardim do éden pode ter ficado menos colorido, mas a descoberta de seu ponto exato no globo é mais um avanço no conhecimento da aventura humana.


O rosto do primeiro europeu
Fotos BBC/divulgação e Jean-Claude Bragard/BBC

Herança africana
A reconstituição feita a partir de fósseis faciais (à esq.) mostra o homem que deu origem às atuais etnias europeias: a semelhança com a brasileira Luzia (à dir.) não é coincidência.

Há dez anos, o médico e artista plástico Richard Neave, da Universidade de Manchester, especializado em reconstituição facial, mostrou ao mundo o rosto de Luzia, o fóssil mais antigo de um brasileiro, com 11 500 anos. Agora, Neave revela a face do primeiro europeu, baseado em partes do crânio e da mandíbula de um Homo sapiens de 35 000 anos encontradas em 2002, na Romênia. A semelhança entre as duas reconstituições ajuda a entender como uma população reduzida de homens deu origem à ampla diversidade de etnias que habitam o planeta. "O processo de diferenciação que produziu brancos, negros ou japoneses começou há 10 000 anos", explica Walter Neves, arqueólogo da Universidade de São Paulo. "Antes desse período, todo mundo possuía rosto semelhante ao dos atuais africanos", conclui ele, responsável pela descoberta que mudou o que se sabia sobre a pré-história da América. Até os fósseis de Luzia serem encontrados, a tese mais aceita afirmava que os antepassados dos índios foram os primeiros a chegar ao continente, há 12 000 anos. Hoje, os cientistas sabem que o mais provável é que um grupo aparentado dos aborígines australianos tenha saído do sul da China atual e atingido o continente americano há 15 000 anos.

O antropólogo americano Erik Trinkaus, da Universidade de Washington, foi um dos primeiros cientistas a analisar a ossada do primeiro europeu. Ele afirma que o crânio e a mandíbula são os fósseis que, com mais segurança, mostram como o homem era quando chegou à Europa, apesar de imprecisões impossíveis de sanar. "Os ossos não contam a cor da pele de uma pessoa nem a grossura dos seus lábios", disse Trinkaus a VEJA. Ele pondera que a semelhança entre Luzia e o primeiro europeu se deve também às técnicas de Nea-ve, que sabe como poucos especialistas em reconstituição como os tecidos da face se amoldam a determinados tipos de osso.

Crise econômica ameaça era histórica de mobilidade

Folha de São Paulo
São Paulo, segunda-feira, 06 de abril de 2009
ENTREVISTA DA 2ª
DEMETRIUS PAPADEMETRIOU

Crise econômica ameaça era histórica de mobilidade
Para historiador, mundo vive momento mais desafiador em quatro décadas, mas uma desglobalização só é plausível se políticos "estúpidos" ignorarem 30 anos de abertura

ANDREA MURTA
DE NOVA YORK

As praias mediterrâneas da Líbia foram banhadas por dezenas de corpos dos mais de 200africanos que naufragaram durante uma precária travessia ilegal em direção à Europa. A milhares de quilômetros dali, no Japão, o governo passou a pagar R$ 6.700 para imigrantes desempregados deixarem o país. Os dois movimentos, ocorridos na última semana, são reflexos distintos de um mesmo e crítico dilema: o que a crise econômica força hoje nos fluxos migratórios globais.

Para o historiador e cientista político Demetrius Papademetriou, apesar do desespero dos que ainda se arriscam, a crise está sufocando o apogeu histórico de mobilidade do século 21, lançando o mundo no "ambiente mais desafiador das últimas quatro décadas". Leia a seguir a entrevista que ele deu à Folha, por telefone, de Washington.

FOLHA - A crise atual é diferente de outras em termos do efeito nos fluxos migratórios?
DEMETRIUS PAPADEMETRIOU - Estudo imigração há quase 40 anos, mas nada do que vi na vida me preparou para o que vivemos hoje. Não só a crise é pior como os fluxos migratórios são muito superiores aos do passado: por isso, as consequências são muito mais importantes. Estamos certamente no ambiente mais desafiador das últimas quatro décadas.
Em 1982 o desemprego nos EUA, por exemplo, era mais alto, mas outros indicadores não estavam nem perto de ser tão ruins. Os choques do petróleo de 1973 não foram nem de longe tão ruins, e a migração nos anos 1970 para os EUA era insignificante. Mas ainda é cedo para ir mais além e fazer comparações com a Grande Depressão nos anos 1930.

FOLHA - Antes da crise, como a última década se encaixava na história dos fluxos migratórios globais?
PAPADEMETRIOU - Estávamos vivendo um recorde. Não seria um exagero dizer que nos primeiros sete anos do século 21 deixávamos a era das migrações e entrávamos na era da mobilidade. É difícil comparar porque existem inúmeras variáveis, como o crescimento da população mundial. Mas, sem contar a imigração forçada, vivíamos o maior fluxo migratório de todos os tempos. Tanto a migração dos altamente qualificados quanto a dos ilegais estavam várias vezes acima do que jamais foram. O único fluxo de pessoas que caiu na última década foi o de refugiados.
A ONU calcula com base em estatísticas nacionais que ao final dos anos 1990 os imigrantes eram 3% da população mundial (cerca de 180 milhões de pessoas). Mas essas estatísticas são bastante inferiores ao número real, pois a maioria dos países nem tenta contabilizar os imigrantes ilegais. E a definição de imigrante de muitas formas é artificial. Na Alemanha, por exemplo, não é considerado imigrante um estrangeiro descendente de alemães.

FOLHA - O que causou esse recorde nos anos 90?
PAPADEMETRIOU - Vários fatores. A demografia dos países ricos os deixou muito mais interessados na imigração, tanto legal quanto ilegal. Os países ricos estão "duplamente espremidos" pelo envelhecimento da população e pela queda na natalidade. Esses países também ficaram de certa forma "ricos demais" e começaram a desprezar certos tipos de trabalho, como a agricultura, que foram preenchidos por imigrantes.
Outro motivo é que a abertura comercial recente criou uma demanda por imigração de fato, principalmente a qualificada. E, por fim, o aumento na conscientização dos direitos humanos provocou redução nos esforços de remoção de ilegais.

FOLHA - O que já vemos de mudança com a crise atual?PAPADEMETRIOU - Apesar de os dados oficiais estarem pouco consolidados, não há dúvidas de que o fluxo diminuiu. As decisões de imigração são racionais; as pessoas fazem parte de redes sociais bem informadas, é claro que o fluxo acompanharia a queda das oportunidades.
Nos EUA, sabemos que o fluxo de imigração vem caindo desde 2007, mas não há dados que comprovem que o retorno aos países de origem aumentou. A crise vai afetar de forma muito dura os países de origem dos imigrantes ao longo deste ano, desencorajando a volta.
No Reino Unido, temos mais pistas, principalmente sobre imigrantes regularizados. O país tinha, em 2008, 6,6 milhões de imigrantes. Em 2007, 580 mil pessoas chegaram ao país, a maioria delas vinda do Leste Europeu e da Comunidade Britânica. Mas no último trimestre de 2008 houve queda substancial de pedidos de autorização de trabalho. O número de aprovações (cerca de 25 mil) foi 50% menor que no ano anterior e também foi o menor desde o alargamento da UE em 2004. Podemos dizer que há indícios de que não só a imigração já atingiu seu pico como os imigrantes estão mesmo voltando para casa.

FOLHA - Os efeitos da crise na migração serão distintos nos EUA e na Europa?
PAPADEMETRIOU - Sim. Os EUA têm uma proporção muito maior de imigrantes ilegais [um terço]. E a imigração ilegal é a que mais responde ao ciclo econômico. Mas os imigrantes legais também podem ser afetados, pois têm pouco acesso ao sistema de apoio social do governo. Em contraste, em vários países europeus, a rede de proteção social é aplicada igualmente para todos.
É o caso da Espanha, cuja situação econômica é uma das piores entre os países ricos, mas cujo sistema de apoio social é um dos mais generosos do mundo. O governo está oferecendo até 40 mil euros, dependendo da situação, para que imigrantes deixem o país. E não está funcionando. No Reino Unido, a situação é um pouco diferente, porque grande parte dos imigrantes vêm da UE e têm trânsito livre. Eles podem sair sem medo de serem barrados depois.

FOLHA - Quais as consequências econômicas dessas mudanças, se a crise for prolongada?
PAPADEMETRIOU - As novas circunstâncias seriam muito duras com os imigrantes. Se o fluxo de retorno aumentar muito, os países de origem vão sofrer, pois a imigração é sabidamente um forte redutor de pobreza para as famílias do Terceiro Mundo. Nos países de destino, temo que se chegue ao ponto em que imigrantes, particularmente ilegais, se tornarão alvos da população doméstica, como se fossem responsáveis pela falta de empregos. Além disso, quando a prosperidade retornar, a economia dos países ricos sofrerá se demorarem a reconquistar os imigrantes necessários. Os trabalhadores mais flexíveis são os imigrantes, e sua mobilidade geográfica é extremamente importante para os mercados de trabalho.

FOLHA - Então o sr. não crê que a diminuição dos fluxos possa ser permanente?
PAPADEMETRIOU - Não. Esse negócio de "fim da bolha da imigração" é só uma frase de efeito. Não posso dizer que vamos restaurar os mesmos números dos últimos quatro ou cinco anos.
Mas quando a economia começar a se recuperar, o resultado mais provável é o retorno das tendências de antes da recessão. E os primeiros a voltar serão os ilegais, que são os que realmente se movem acoplados à situação econômica.
Conheço dados sobre comércio global, nacionalismo econômico e etc. que sustentam o argumento de uma retração da globalização. Mas daí a dizer que a "desglobalização" está começando a acontecer é prematuro. A chance de "desglobalização" é proporcional à estupidez dos políticos. Se começarem a cancelar acordos e ignorar 30 anos de aberturas, aí ela será possível.

URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0604200911.htm

CAETANO VELOSO - O PENSAMENTO NA CANÇÃO

REVISTA CULT ONLINE (12/05/2009) - Edição 135
O pensamento na canção
Com disco novo na praça, Caetano Veloso desmente o fim da canção, fala de política, filosofia e afirma que o Brasil desenha mesmo o futuro do mundo.
(Francisco Bosco e Eduardo Socha)

CULT - Em seu blog, você se mostra encantado pela influência de São Paulo e procura até mesmo esterilizar todo juízo de valor relacionado à força dessa influência, quando coloca lado a lado o Museu da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo, a Daslu e o res-taurante Fasano. Por que São Paulo não aparece em suas novas canções?
Caetano - Porque moro no Rio e passei todo o ano de 2008 no Rio, construindo o repertório do novo disco. É um disco carioca de nascença e de formação. Fala de lugares e pessoas do Rio. Sempre tenho saudades de São Paulo. E me orgulho muito de ver a força da cidade se afirmando cada vez mais. Você está certo em notar que é significativo que o Fasano e a Daslu apareçam ao lado do Museu da Língua Portuguesa e da OSESP. Várias pessoas no blog protestaram, como se eu tivesse dito uma blasfêmia. Mas o momento de percepção da força não é o momento do julgamento moral ou político. A visão que inclui o Fasano é da mesma natureza da visão que surge em "Sampa". Acho tolice pensar que maculei meu texto sobre São Paulo por incluir conseguimentos empresariais marcantes, mesmo que envolvam denunciadas ilegalidades. Desejo é passar mais tempo em São Paulo e, mesmo sem isso, escrever músicas em que coisas e climas da cidade apareçam.

CULT - Há muito afeto dedicado ao Rio nas letras e na ambientação sonora deste último disco. Por outro lado, comparado àquilo que você fala de SP, tem-se a impressão de que o Rio está passando por um grande deficit de autoestima. É só impressão?
Caetano - Não é só impressão. Embora eu preferisse não usar aqui a expressão "defict de autoestima". O Rio passa por longa ressaca da perda do status de capital e enfrenta gradativa relativização do status de centro cultural do país. Baianos entendem muito disso. Mas a autoestima arraigada na formação dos cariocas não se desfaz facilmente. Ela se conflitua, perde o relaxamento, mas estamos longe de poder falar em deficit.

CULT - Seu trabalho anterior, Cê, é um disco de rock. Antes dele, A foreign sound trazia canções estadunidenses (apesar de pouco eufônico, considero esse o termo conceitualmente correto), por meio das quais você pensava as relações entre a música do Brasil e a dos EUA. Agora você apresenta um disco, zii e zie, com a noção de "transamba". Pois bem, por que dedicar um pensamento cancional ao samba, nesse momento? Há alguma razão cultural, histórica nesse interesse? E como você entende essa noção de "transamba"?
Caetano - Eu só fiquei com vontade de pegar umas maneiras bem simplificadas de tocar samba no violão (a partir de umas estilizações que Gil fazia - e que eu usei em "Madrugada e amor" e "Eleanor Rigby") e levá-las para a banda de rock que armei com Pedro Sá pro Cê. Fui compondo já pensando nisso. Como era uma espécie de reprocessamento de elementos rítmicos do samba, me ocorreu a palavra transamba para apelidar o lance. O Marcos Maron já tinha usado essa palavra num disco dos anos 70. Mesmo assim, mantive a palavra na capa do disco (nunca foi pensada para ser o título). Agora, a motivação histórica eu não sei. O samba é tema perene para quem lida com música no Brasil. Mas não posso deixar de notar que esse disco sai num período em que muita gente grava samba. Há também uma fagulha rebelde: samba e rock são as áreas mais protegida criticamente e as que mais autorrespeito exibem - mexer nesses santuários me excita.
Achei gozado você dizer "estadunidense", pois no blog discuti com uma argentina que implicava com a palavra "americano" para caracterizar os que nascem nos Estados Unidos. Mas é que não gosto de fingir que não se sabe do que se está falando, quando se sabe. Se digo "filme americano", "música americana", "ele é americano", todos sabem do que estou falando. Para ir fundo na questão do nome do país mais rico do mundo, temos de começar por constatar que ele não possui um. Tanto eu em Verdade Tropical quanto Godard em Eloge de l'amour dissemos isso extensivamente. "Estados Unidos" não é um nome - e América é o nome do continente em que aquele país (aliás o nosso também) se estabeleceu. Os hispanoamericanos escrevem "estadounidense", com o "o" de "estado" (mas sem o "s" do plural). Em português, esse ditongo "ou" pesaria no meio da palavra. Evitamos. A nossa palavra é um pouco melhor. Mas me é ainda tão incômoda que não vejo no esboço ressentido de problematização do nome do irmão do norte razão para usá-la. A Foreign Sound tem muito a ver com isso: é um disco rechea-do de inteligência sobre os meandros da força imperial. Há dicas de sobra nas notas do encarte a esse respeito. O rock de Cê vem eivado de discussão íntima e pública dessa complexa textura histórica. O transamba de zii e zie é complemento natural desse passo. Isso é parte do que eu diria, se estivesse constante e conscientemente levando em conta esses aspectos da criação a que você se refere em sua pergunta.

CULT - Ao contrário das letras de Cê, que eram concisas e curtas, as letras de zii e zie tendem à expansão. A letra brevíssima de "Base de Guantánamo" é uma frase em prosa sobre uma indignação política. Durante os shows de Obra em progresso, você abria um espaço em que comentava temas da atualidade. Finalmente, houve a criação do blog, onde você propôs discussões cujo leque abrangia da lingüística ao carnaval, do rock à filosofia. Você diria que está tendendo cada vez mais à discussão verbal, ao amor pelas idéias? É claro que sua obra cancional sempre foi reflexiva - e também sua obra em outras linguagens -, mas você diria que isso está se radicalizando (se é que é possível)?
Caetano - Eu sempre brinco com isso. Mas a piada mais radical que fiz nesse sentido foi O Cinema Falado. Adoraria fazer um filme totalmente narrativo, popular, e com poucas palavras. No caso da obraemprogresso, acho que coisas que aconteceram no palco levaram ao uso do blog como lugar para discutir qualquer assunto. Começou com o alegado racismo de Noel em "Feitiço da Vila". De fato, aquele "feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém, que nos faz bem" parece dizer que o samba, tendo chegado à classe média de Vila Isabel, se livrou dos aspectos africanos e passou a ser "decente". A Vila, aliás, tem "nome de princesa", a que assinou a lei abolindo a escravidão. Tudo isso é demasiado sugestivo para que ninguém tenha tentado entrar na questão. Claro que eu não classifico Noel como um racista, mas esses aspectos do "Feitiço da Vila" (bairro que, aliás, é descrito na letra como não tendo ladrão) sempre me pareceram gritantemente negligenciados.
Quando o discurso sócio-político brasileiro se racializou, para o bem e para o mal, eu cedo meditei sobre essa canção. Não queria deixar de contar isso, levantar essa lebre. Depois veio Fidel escrevendo que eu e Yoani Sánchez (que tem um blog crítico da vida em Cuba) somos exemplos de submissão ao imperialismo ianque. Depois meu pé atrás com os sociolingüistas, que passei a conhecer um pouco melhor justamente porque revelei meus grilos com eles. (Acho que eles podem contribuir muito, mas temo que eles tenham estado demasiado eufóricos com a cientificidade da matéria que estudam e ponham a gramática sob suspeição, antes que encorpemos um projeto de letramento das massas brasileiras - e tudo isso demasiado evidentemente atrelado à política partidária e mesmo eleitoral.) Assim, tudo no blog virou discussão de botequim. Bem legal. Mas eu não creio que eu tenda a me dedicar mais à discussão de ideias do que já tenho feito. Não estou preparado para fazer isso sistematicamente.

CULT - Um dos filósofos mais debatidos no mundo, hoje, é Slavoj Zizek, a respeito do qual você disse, em seu blog: "não penso como Zizek mesmo!". Você poderia explicar em que consiste essa divergência exclamativa?
Caetano - Talvez a exclamação se devesse ao contexto da discussão daquele momento. Zizek é pop. Ele também é um intelecto superexcitado e tem erudição em várias áreas. Ampara-se em Hegel e Lacan para louvar Matrix, filme que, para mim, é um abacaxi de caroço. Ele gosta desses esquemas que dizem que somos sempre manipulados. Quanto mais claro pensamos, mais presos estamos a ideologias que camuflam interesses. Mas eu fico com Antonio Cicero quando lembra Hanna Arendt a esse respeito. Zizek tem o charme de falar no que a esquerda em geral evita mencionar: ele prefere ter algo positivo a dizer sobre as paradas fascistas da Coréia do Norte do que fingir que não as vê. Eu li Bem vindo ao deserto do real, um livro curto, e In defense of lost causes, um grosso volume. Ele convoca Robespierre, Lênin e Mao e exalta a revolução violenta. No fim, ele elege a causa ecológica como a escolha certa da esquerda para exercer o terror.
Eu tinha lido um artigo de Nelson Ascher na Folha predizendo isso. Na altura, achei o artigo de Ascher reacionário e algo simplista. Ao ler a conclusão de In Defense of Lost Causes, achei que Ascher tinha razão. Para Zizek, toda crítica à liberdade de expressão nos países comunistas é mera tramóia liberal burguesa. Além disso, ele grila com o café descafeinado. Qual o problema? Café não é cafeína. Nesse caso, ele faz uso indevido das palavras. Bem, além desses dois livros, li artigos esparsos e vi dois documentários americanos sobre ele (lá nos States, passa no cinema e tudo: ele é uma estrela). Num, segue-se uma turnê de palestras. No outro, vê-se Zizek comentando filmes. Assisti à palestra dele na UFRJ. Ele é um cara enérgico, engraçado, sua muito e pronuncia todas as letras das palavras inglesas - com a adição de um cicio. Resulta simpático. Achei irresponsável ele dizer aquelas coisas a um bando de jovens brasileiros. Mas acho que a exclamação no meu comentário se deve a ele ter falado mal do carnaval.
Só preciso te dizer que leio sempre, mas sempre muito sem método ou mesmo critério. Por exemplo, comprei Coração das trevas no aeroporto, em dezembro, indo para Salvador. Ao chegar lá, comentei com Paulo César Sousa a qualidade da tradução de Sérgio Flaksman. Paulo então me disse que acabara de ler um romance estranhíssimo de Conrad, chamado Under western eyes - e me trouxe o exemplar. É um livro incrível, em que Conrad conta uma história que prende o leitor como Crime e Castigo e onde ele mostra que a autocracia russa, marca do Csarismo, estava presente no espírito dos revolucionários russos que se refugiavam na Suíça. E prediz o estilo autocrático que sairá de uma revolução feita por eles. O romance é de 1908, creio. Estava impressionado com isso, quando uma amiga americana me trouxe de Nova Iorque um exemplar de The Nigger of The Narcissus (ela e eu tínhamos uma discussão sobre o problema da palavra "nigger" no país dela) e Tuzé Abreu, me ouvindo falar de três livros de Conrad me trouxe Lord Jim e Linha de sombra. Passei grande parte do verão lendo Conrad, coisa que não planejei, nem sequer imaginei que fosse fazer. Paulo ainda me deu um livro chamado The Great Tradition, um estudo crítico da ficção inglesa, em que Conrad aparece ao lado de George Elliot e Henry James como os seus maiores representantes. Aí li com atenção especial a parte sobre Conrad. É assim, minhas leituras são definidas pelo acaso. Agora estou lendo The Pirate's Dilemma, um livro otimista sobre internet, pirataria e desrespeito aos direitos autorais. Então, minhas opiniões sobre cultura livresca devem ser tomadas com um grão de sal.

CULT - Ainda em seu blog, num post a respeito da história recente e do papel cultural, político e econômico das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, você declara: "Só mais tarde tomei contato com pessoas que olhavam para o Brasil com um jeito arrogante, como se fossem de uma grande cidade do mundo e tivessem que arrastar essa África às costas. Entendi que alguns queriam salvar o Brasil, outros, livrar-se dele. Passei a chamar isso (irresponsavelmente) de USP". Você poderia desenvolver essa passagem e nos explicar como compreende o papel da USP na história recente do Brasil?
Caetano - Acho o papel da USP impagável. (E adorei chegar à dubiedade semântica dessa palavra.) No blog eu estava falando meio poeticamente sobre São Paulo. O aceno risonho à USP surgiu rápido demais no parágrafo. Além de contribuir com a elevação do nível da "massa crítica", a USP orientou nossa política real. Tanto FH quanto Lula são crias da USP. Sei que os dois grupos reagem contra essa simplificação. É que não é uma simplificação. É uma complexificação para além do pensamento (predominantemente paulista) que opõe PT a PSDB. Eu gosto de Marina Silva.

CULT - Você parece manter uma relação de amor e ódio com a USP, reconhecendo a importância política (incluindo aí FH e Lula) mas tratando o pensamento uspiano como aquele que queria se livrar do Brasil. Existe ainda função política ou "civilizacional" da universidade?
Caetano - Percebi cedo em São Paulo as oscilações entre querer livrar-se do Brasil, querer salvá-lo ou querer alcançá-lo em sua brasilidade. Muitas vezes a inveja, o desprezo e a condescendência se mesclam numa mesma pessoa. Não acho que a USP seja exemplo do desejo de se livrar do Brasil. Não foi o que eu escrevi no blog. Todas as nuances dessa particularidade paulista se encontram na USP (e a particularidade descrita não repre-senta o todo da relação de São Paulo com o resto do país). Mas a "brasilificação do mundo" não significa a mesma coisa para José Miguel Wisnik e para Paulo Arantes. Oswald de Andrade e Haroldo de Campos não significam a mesma coisa para Roberto Schwartz e para Leyla Perrone-Moisés. Se lêssemos a Folha de S.Paulo entre os anos 1980 e 90, sentiríamos que a USP dominava a imprensa, era seu núcleo crítico. Ainda hoje o adornianismo impera até em cadernos de rock'n'roll para adolescentes. O que é a ironia das ironias.
Assim, os neo-conservadores (com todas as grossuras que lhes são características) brilham como um grupo contrastante em ambiente dominado. Não nos enganemos: não estamos falando da USP, mas de uma certa esquerda desenvolvida na USP. Pois há conservadores na USP, inclusive convidados a preencherem as janelas de direita que os jornais descobriram que precisavam abrir. A reação é mais geral: é contra a hegemonia da esquerda. Natural que, sobretudo em São Paulo, algum jornalista se anime a falar em "esquerdopatas da USP". Eu acho esse tom cafajeste e sem graça porque é superficial. Não apenas esse período FH-Lula não seria possível sem a esquerda uspiana: a universidade tem tido e ainda terá grande papel a desempenhar no nosso amadurecimento político e civilizacional.
A razão de minha birra com o que chamo de USP está descrita pelo próprio Fernando Henrique na conversa com Mário Soares: ele conta que, como sociólogo, ele tinha se oposto a Gilberto Freyre, mas que o exercício da presidência o tinha levado a rever seu julgamento. Como eu gosto de Gilberto Freyre sobretudo por suas conseqüências políticas (as conseqüências históricas do mito luso-tropicalista se tornaram mais palpáveis a FH quando ele teve de enfrentar o Brasil real), considero a crítica que o ex-presidente sustentava antes aquém da intuição mais lúcida do significado da experiência brasileira. E toda teimosia em manter os termos dessa crítica hoje me parece caricatural. FH deu uma desmunhecada quando se abriu vaidosa e descuidadamente para João Moreira Salles na revista Piauí. Lula em geral está além, e não aquém, da intuição luso-tropicalista. É um presidente que soa sempre eufórico e deslumbrado. Mas há algo real no móvel do deslumbamento de Lula. A USP é top de linha na vida acadêmica brasileira. Ainda tem muito a dar. Mas a vida acadêmica brasileira terá de mudar muito - e espero que isso venha como conseqüência de alguma inspirada revolução no ensino básico. Mas entenda que eu próprio não sou luso-tropicalista: a escolha da anedota de FH versus Freyre foi apenas paradigmática.

CULT - Paulo Arantes fala da tendência sociológica que vê uma "brasilianização do mundo", ou seja, a exportação do nosso modelo social de favelização, precarização do trabalho, distanciamento maior entre centro e periferia e também do nosso jeitinho para negociar com a norma. Para essa tendência, o Brasil virou o país do futuro, mas de um futuro nada romântico. Em "Falso Leblon", por outro lado, você pergunta melancolicamente "o que faremos do Rio quando, enriquecendo, passarmos a dar as cartas, as coordenadas de um mundo melhor". Que mundo seria esse, inspirado pelo Brasil?
Caetano - Seguramente não seria o mundo descrito pelo americano que Paulo Arantes cita. O Brasil não corresponde, quando o olho com lucidez, à visão que Paulo Arantes tem dele. No início do século 20, você lê a comparação feita por Lima Barreto entre o Rio e Buenos Aires. Antes disso, você lê em toda parte que as universidades e a imprensa chegaram aos países hispanoamericanos séculos antes de chegarem ao Brasil. No entanto hoje eu tenho às vezes de ser condescendente com argentinos que sentem despeito da arrancada brasileira. E Machado e Euclides chegaram aonde chegaram. E Guimarães Rosa. E João Gilberto, Jobim, Niemeyer, Pelé, Chico Buarque. Partimos de um país selvagem, inculto, de cidades sujas, cheias de negros ex-escravos e mestiços desrespeitados. As mudanças que tenho visto desde a minha adolescência são muito rápidas e muito grandes para que os mais letrados entre nós só repitam que não andamos. É loucura.
Mas sem crítica e sem lamentos tampouco se anda. Então está bem. Mas alguém precisa alertar para os conseguimentos, senão não há responsabilidade. O que se ouve em "Falso Leblon" é algo que pode se dar ao luxo de ser dito em tom melancólico: não precisa de euforia. Um solitário entristecido pela visão de uma bela jovem degradada pode meditar sobre o possível enriquecimento e fortalecimento do país onde nasceu e vive. Jorge Mautner diz que "ou o mundo se brasilifica ou vira nazista". Eu sou diferente de Mautner, mas também o amo muito por dizer isso. Nosso "jeitinho para negociar com a norma" talvez contenha mais elementos do que sonha a sociologia de Arantes. Nenhum país real produz um futuro real que seja o que hoje podemos chamar de "romântico". Se o futuro que o Brasil esboça é desde já criticável, é sinal de que já estamos longe de poder simplesmente rir do livro de Stefan Zweig. E que o Brasil já é visto como algo que desenha mesmo o futuro do mundo.
Eu não estou tão convencido, apesar de Arantes e seus colegas aglófonos catastróficos. Há europeus continentais (é o caso de um italiano que escreveu "Hedonismo e medo") que veem o Brasil como modelo para o futuro do mundo - para o bem e para o mal. Mais para o bem, já que o "jeitinho para negociar com a norma" é visto por eles como um modo interessante (e misteriosamente promissor) de metabolizar os males sociais.

CULT - Você foi uma das primeiras pessoas no Brasil a chamar a atenção para o pensamento de Roberto Mangabeira Unger. No livro O que a esquerda deveria propor?, o atual Ministro defende um pensamento alternativo de esquerda, para além da nostalgia e da social-democracia. O que mais te atrai nessa proposta?
Caetano - Quem me deu a dica foi José Almino. Ele me mandou ler os artigos de Mangabeira na Folha. Desde os anos 80 que o que ele escreve me interessa. É uma contribuição sofisticada e original. Para mim, o importante do Brasil é ser essa oportunidade de originalidade. Lendo Mangabeira, senti que gente como ele pode elaborar o que eu não poderia senão sonhar. Sempre me interessei por alguma coisa que supere o estágio a que chegamos na história humana. Sou artista, me sinto no direito de não fazer por menos. Zizek, que, erroneamente, contrapõe sua preferência por Chávez ao apoio a Lula dado por Toni Negri, menciona Mangabeira de raspão entre os pensadores de esquerda que tentam pensar algo novo. Pois bem, requentar Stalin e Khomeini para se mostrar valente diante da lucidez liberal não me parece novo. É louvar a velha sangueira que produz opressão. Mangabeira vai fundo na análise do conceito de "capitalismo" em Marx, por exemplo, para chegar a propor grandes transformações que prescindam da guerra. Isso para mim é novo. É sonhar com mudanças que mudem mesmo. Eu já sonhava isso para o Brasil antes de conhecer o professor Agostinho da Silva. Ler Mangabeira, com essa perspectiva, apoiando Brizola quando eu apoiava, Ciro quando eu apoiava, me fez repetir o nome dele por mais de uma década para uma imprensa que se recusava a publicá-lo. Há algo de religioso em tudo isso. A aposta dele, como a de Agostinho, é num milagre. Eu não sou religioso. Mas desejo mudanças do tamanho de milagres. Isso não me parece necessariamente irrealista.

CULT - O mandato de Lula termina no ano que vem. Em 2006, em entrevista à CULT, você disse que, embora o achasse mítico e simpático, não votaria na sua reeleição de jeito nenhum. Você acha que o "esse é o cara" do Obama mostra apenas que Lula é um mito que ultrapassou fronteiras ou acha que isso sinaliza de fato uma transformação geopolítica maior?
Caetano - Obama se espelhou em Lula. Até "boa pinta", que ele é mas Lula não, rolou na fala. Mas esse espelhamento não teria permissão para se declarar se não conviesse ao poder americano que Lula fosse agraciado com elogios. Há transformação. Lula e Obama a simbolizam bastante bem. E a crise dá espaço para hipóteses ambiciosas. Ou meramente catastróficas. Mas o Brasil que saiu da era das ditaduras, com a abertura do mercado efetivada por Collor - e que passou pela globalização nas mãos de Fernando Henrique e Lula - é um país com maior peso internacional. Vi ontem Anabasys, o belo filme sobre a feitura de A idade da terra, e nele ouvi Glauber xingar Delfim Neto. Glauber o faz de um ponto de vista da esquerda estatista que ele representava ao apoiar Geisel (corretamente lido como um estatista-nacionalista que faria a abertura), embora a esquerda o atacasse por apoiar um presidente militar. Hoje Lula ouve conselhos de Delfim, a quem faz elogios.
Lula vive a euforia de ver o amadurecimento econômico do país acompanhado de um crescente prestígio das coisas brasileiras aos olhos do mundo. Nisso eu me identifico mais com ele do que com seus críticos. À esquerda ou à direita. Embora eu seja mais cético e, em comparação, um tanto melancólico. Sua chegada ao poder, a de um operário iletrado, é um êxito enorme na Europa desde o começo. Durante a crise do mensalão, vi reações de proteção a Lula na Itália e na França, mais até do que entre petistas brasileiros. Lula é figura internacional. Obama reafirmou isso. Os Estados Unidos precisam de um Lula forte e um Chávez negociador. Ninguém é burro nessa turma. Votei em Lula chorando de emoção. Nunca me arrependi de tê-lo feito. Acho que ele se sente capaz de aproveitar o plano real de FH, o milagre brasileiro de Delfim/Medici, a industrialização de Juscelino (que, aliás, tornou possível seu surgimento) e o populismo getulista. Nunca antes neste país.
Mas nunca desejei que Lula se reelegesse. Nem desejo que ele eleja Dilma e volte em seguida. Aliás, em minha impaciência, votei contra (e torci contra) a reeleição de FH e de Lula. Achei que 16 anos de esquerda uspiana no poder seriam demais. Mas até que o resultado é, para nossos parâmetros, bastante bom. Mesmo porque, mal chegam lá, eles se veem longe da visão que os engendrou como figuras políticas fortes. Muitas vezes se chama de traição a simples evidência de amadurecimento. Odeio políticas antiquadas de favores, corrupção e fisiologismo, odeio mensalão também - mas não desprezo a aproximação entre Lula e Delfim, nem entre FH e Toninho Malvadeza. No primeiro caso, era preciso chegar lá - e nenhum presidente não petista poderia ter um economista da ditadura, apoiador do AI-5, em posição de guru. No segundo, às vezes só se supera um quadro arcaico confundindo-se com ele e, astuciosamente, desconstruindo-o. No final do governo FH, ACM, Jader Barbalho e Sarney pareciam figuras superadas. Voltaram com tudo na era Lula. Mas Lula tem força própria e uma vaidade histórica do tipo que me parece útil agora. Pareço dizer loucuras? Mas se sua pergunta já começa com aquela do Paulo Arantes...

CULT - Se fosse preciso (você pode recusar tal necessidade), como você se definiria politicamente? De esquerda, de direita, de centro, social-democrata, liberal?
Caetano - Nessa hora eu adoraria ser americano: nos EUA "liberal" quer dizer "de esquerda". Eu estaria unido a palavras que produzem bem-estar. Aqui tenho de me contorcer e dizer que sou de uma esquerda transliberal. Digo também que sou de centro mas não estou em cima do muro: estou muito acima do muro. Mas isso tudo é fanfarronice de artista.
Eu aplico o termo "direita" a conservadores reacionários. Todo o pessoal de esquerda gosta de citar Alain dizendo que se alguém diz que não há tal divisão "direita e esquerda", esse alguém é de direita. A observação é aguda e engraçada. Mas pode servir justamente a propósitos conservadores. Volto a Antonio Cicero: há uma reação à modernidade que se organiza em áreas do que chamamos direita e em áreas do que chamamos esquerda, hoje. Concordo com ele que desqualificar os direitos individuais, os direitos humanos propriamente ditos, é uma manobra conservadora profunda - que você pode encontrar tanto em Olavo de Carvalho quanto em Slavoj Zizek. Tanto no cardeal que excomunga os médicos que fizeram o aborto da menina estuprada pelo padrasto quanto no dirigente comunista que nega o direito de ir e vir dos cidadãos do seu país. Ou o direito de crítica. Cicero não é bobo de pensar que todos os sofisticados da academia não pensam que ele simplesmente quer limpar o terreno de toda a riqueza conceitual que vem desde Heidegger e Wittgestein, passando pelos frankfurtianos, até os pós-estruturalistas, para voltar - num movimento de contravanguarda filosófica - ao racionalismo vulgar dos iluministas. Cicero sabe que enfrenta essa questão com bravura.
Para ser sincero, com meu espírito místico e meus instintos de vanguarda, não sinto as coisas como ele sente. Além de ser muito ignorante para de fato entrar no debate. Mas não dá para seguir em frente repetindo Adorno ou ecoando Deleuze sem responder as questões que Cícero põe. Ele vem de um marxismo estruturalista (Althusser) e reencontra o melhor do liberalismo inglês e do racionalismo francês porque pensou mais do que os que apenas se ilustraram ou mesmo se refinaram muito. Ou seja: para se ir adiante tem-se que superar a crítica que ele faz. Eu o encontro em meu realismo radical, em minha paixão pela lucidez e pela justiça. Somos amigos e ele também é artista (na verdade, poeta), mas se eu encontrasse O mundo desde o fim por acaso, e não conhecesse o autor, eu ficaria tomado. Eu considero minhas confusões e a limpidez do pensamento de Cicero à esquerda de todas as formas de negação da modernidade. Digam-me que uma razão unívoca não pode dar conta dos nós da superpopulação (sou louco pelo Lévy-Strauss de Tristes Trópicos - e adorei ler hoje que Euclides da Cunha profetizou com grande clarividência os problemas ecológicos que enfrentamos), dos enigmas da mecânica quântica, do mistério complexo das culturas. De acordo. Mas não usem esse espantalho para desenterrar formas já testadas e já rejeitadas. Pode ser que haja um grande retrocesso na civilização. Mas ele não terá em mim um de seus arautos.

CULT - O que pensa da proposta de alteração da lei Rouanet? Ela de fato impulsiona o dirigismo estatal na cultura? Que implicações dessa mudança você veria, em particular, na produção musical?Caetano - Sinceramente, nunca pensei a lei Rouanet do ponto de vista da música popular. Sempre considerei o negócio da música muito bem-sucedido no Brasil. Não parecia precisar de incentivos maiores do que os que já tinha. A área que me vem à mente logo que se fala em lei Rouanet é a do cinema. Quando da tentativa de se instaurar a ANCINAV, eu reagi vigorosamente. Toda a força que o cinema brasileiro ganhou desde que se livrou da política assassina de Ipojuca Pontes, ministro de Collor, se deveu à lei Rouanet. E, depois, à lei do audiovisual. Não tenho talento para acompanhar tecnicalidades jurídicas. Mas naquela altura, era nítida a tendênca dirigista. Até sugestão de que as obras estivessem de acordo com as políticas de governo (mormente o projeto Fome Zero!) constava do documento. Desta vez, noto que o ponto mais criticável da proposta é o desaparecimento da cláusula que desautorizava julgamento subjetivo do valor artístico, político ou moral da obra. Também a insinuação de que os trabalhos passariam, em certa medida, a pertencer ao Estado dentro de um determinado prazo. A caracterização do poder executivo (o MinC) como co-produtor é incorreta e suspeita. Não creio que Juca seja um dirigista. Ouço-o falar e acredito nele. Mas leis são feitas para serem usadas por governos sucessivos. Não pode haver brecha para dirigismo. E esse novo projeto é muito vago em tudo o mais, dependendo de futuras decisões a respeito de detalhes importantes. Mas, como da outra vez, acho que o bom-senso prevalecerá. Naquela ocasião foi o próprio Lula quem cortou o mal pela raiz. Antes disso, eu fui pessoalmente agredido na revista Carta Capital por ter feito coro aos protestos de cineastas. Passei a chamar a Carta Capital de "a Veja do Lula". Mas Lula driblou as ingenuidades do projeto da ANCINAV. Agora não é caso para ele entrar diretamente na briga. Mas Juca deve ouvir a queixa dos produtores.

CULT - Seu disco comprova mais uma vez que a canção permanece, apesar daqueles que não hesitam em decretar o fim do gênero, um campo aberto para a reflexão sobre a própria linguagem (como se percebe no deslocamento métrico da guitarra/baixo com a bateria na reinterpretação de "Incompatibilidade de gênios", ou no minimalismo que vincula harmonia e letra em "Perdeu", ou na fusão rítmica entre rock e samba que está em outras canções). Mas o gênero ainda aparece também como campo para declarações políticas e de protesto (mais visível na declaração sobre Lula e FH em "Lapa", Osama e Condoleeza em "Diferentemente", e na pancada monocórdica de "Base de Guantánamo"). Apesar disso, você concorda com um certo esgotamento do potencial estético e também político da canção?Caetano - Sou um apaixonado da canção. Meu amor imenso por João Gilberto vem de perceber que ele é o conhecedor profundo do espírito da canção. A cultura pop, tal como a conhecemos, com a canção e o cinema na frente, é algo que chegou ao ápice no século 20. As transformações tecnológicas, políticas e econômicas por que estamos passando esboçam um novo quadro. Chico Buarque comenta que alguém - creio que um italiano - chamou sua atenção para o declínio da forma canção, comparando-a à ópera no século 19. Além disso, Chico se impressionou, com razão, com o fenômeno do rap, que surgiu como a música de protesto escrita diretamente pelos que estão à margem das áreas dominantes da sociedade, e não por compassivos garotos de classe média. Sou mais pop do que Chico, então vivi esse entusiasmo no início dos anos 80 (por causa do filme Beat Street escrevi "Língua", música que, na própria letra, se intitulava "samba-rap", profetizando o que Marcelo D2 faria mais de uma década depois).
Passados tantos anos, cansei da insistência na ostentação de carros, jóias, mulheres como objetos de luxo, desaforos raciais, namoro com chefetes do tráfico: vi essa cultura influenciar os garotos de Santo Amaro (minha cidade natal) e de Guadalupe (bairro de minha infância no Rio) e tendi a perceber fragilidade na política desse gênero de expressão. Mas sempre soube que julgamentos políticos de obras artísticas não funcionam. Então, além de o rap me interessar formalmente (adoro as batidas que enganam a expectativa rítmica do "suíngue", ou as divisões dos vocais canto-falados que executam drible igual), acho que o interesse conteudístico de suas manifestações está na poesia que nasce dessas contradições, desses desacertos - na tragédia dessa forma de ex-pressão. Mas não acho que o rap represente algo pós-canção. É, talvez, um dos sintomas de que o tempo da canção está passando. Se é que está mesmo passando. Formas artísticas não se prendem ao seu tempo. Ninguém sabe o que futuros amantes encontrarão em canções como "Flor da idade" ou "Blackbird", "Don't think twice" ou "Maracatu atômico". A canção gravada em disco e tocada em rádio é marca do século 20. Isso é que está mudando. Mas A CANÇÃO é velha como a humanidade: cantos japoneses, poemas provençais, Lieder alemães do século 19 - tudo isso veio antes da canção do século 20 - e muito mais virá depois.

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